08/04/2017

CATARINA FURTADO

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Trump e as meninas, 
raparigas e mulheres 
deixadas para trás

Não se esquece nunca mais na vida, quando se assiste a uma morte de uma mulher saudável no momento em que está a dar à luz. Uma morte evitável. Eu, pelo menos não esqueço. É desumano.

A mais recente decisão da Administração Norte-Americana vai provocar milhares de mortes de mulheres, crianças e meninas em mais de 150 países, onde habita mais de 80% da população mundial. E nós, Estados membro da ONU, que nos regemos por um mundo mais justo, não podemos ficar impávidos e serenos.

Mortes maternas e neonatais que seriam evitáveis se o financiamento acordado de 32,5 milhões de dólares para o Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) não tivesse sido cortado pelo Presidente Trump, com alegações erróneas baseadas nas políticas de planeamento familiar da China que ainda envolvem o recurso a abortos forçados e a esterilização involuntária.

Sou Embaixadora de Boa Vontade do UNFPA há 17 anos. Uma missão voluntária que me tem feito viajar por muitos países em desenvolvimento onde este organismo da ONU faz um trabalho extraordinário ( e reportei, inclusivamente para o meu programa de televisão “Príncipes do Nada “) para evitar que nenhuma mulher perca a vida durante a gravidez ou o parto, ajudando a impedir gravidezes não desejadas e abortos sem condições nem segurança com recurso a anticontraceptivos.

Nunca em nenhuma ocasião assisti, no terreno, a funcionários do UNFPA a promoverem o aborto. O que vi ao longo destes anos, foi mulheres a ser apoiadas por técnicos de saúde, recuperando a sua dignidade, através da assistência a equipamentos de saúde materna, sexual e reprodutiva. Vi o antes e o depois. Vi as mulheres a morrerem antes da implementação de programas do UNFPA e vi depois, mulheres a ser evacuadas por ambulâncias, a chegarem a uma maternidade ( ou centro de saúde) apetrechados com o financiamento do UNFPA com aparelhos, medicamentos e kits para grávidas, mães e bebés, ao serviço dos direitos humanos. Vi gabinetes de aconselhamento a funcionarem com agentes de saúde formados pelo UNFPA, para jovens e para raparigas, garantindo-lhes o seu potencial; vi a implementação de programas que promovem a maternidade segura; que tentam combater a gravidez infantil e adolescente; que lutam contra os casamentos forçados; que salvam vidas de mulheres que sofrem a dramática consequência de uma fístula obstétrica; vi parcerias que apoiam outras associações locais na diminuição da prática nefasta da mutilação genital feminina; vi projectos que melhoram a qualidade de vida de pessoas com HIV Sida. Vi, em acção, a promoção dos direitos humanos de indivíduos e casais para que tomem decisões próprias, livres de coerção e discriminação.

O que eu vi, que me comoveu, que me faz continuar a trabalhar a acreditar que, apesar de conhecermos os números da desigualdade, ainda é possível fazer a diferença, não me deixa calar perante esta noticia terrível. Sei, com conhecimento de causa, que se trata de uma decisão ignorante perante a verdadeira realidade do trabalho do UNFPA.

E mais uma vez, são as meninas, raparigas e mulheres que são deixadas para trás, ignorando os seus direitos, não querendo ver o quanto sofrem nestes contextos de pobreza extrema. O UNFPA orienta o seu trabalho com base na certeza de que apoiando uma mulher, se está a apoiar uma família, uma comunidade, um país. Só no ano de 2016, com o suporte financeiro dos EUA, o UNFPA salvou a vida a 2,340 mulheres de morrerem durante a gravidez ou o parto; realizou 1,251 cirurgias a fístulas obstétricas; preveniu 295,000 abortos inseguros e 947,000 gravidezes involuntárias.

O Secretário Geral da ONU, António Guterres, já fez saber que acredita que a decisão dos EUA de suspender o financiamento a programas de saúde reprodutiva se baseou numa “percepção falsa sobre a natureza e a importância do UNFPA” e que este corte irá ter “efeitos arrasadores na saúde de mulheres e meninas vulneráveis no mundo”.

Depois de nos congratularmos com a indicação de uma portuguesa para estar à frente do escritório do UNFPA em Genebra, Mónica Ferro, chega-nos esta “bomba” que nos remete para o universo da mentira e sobretudo para um horizonte drástico de mortes evitáveis, a que não vamos poder fazer frente.

A nossa indignação não é suficiente, por isso deixo um apelo aos Estados membro da ONU, ao SG António Guterres e a todos os doadores, para que seja possível reforçar o apoio aos programas e ao trabalho do UNFPA.

Portugal e muitos outros países têm uma dívida de gratidão pelo passado no que diz respeito à qualidade da nossa saúde materna, sexual e reprodutiva. Este é o momento de actuar em conformidade. De dizer que sim, que estamos juntos. Que só podemos estar juntos.

Não se esquece nunca mais na vida, quando se assiste a uma morte de uma mulher saudável no momento em que está a dar à luz. Uma morte evitável. Eu, pelo menos não esqueço. É desumano.

Dói muito e do coração passa para a razão. E acredito que não estou sozinha, mesmo que para muitos, seja apenas um exercício de imaginação, distante dos olhos, não pode ser nunca aceitável.

* Embaixadora de Boa Vontade do UNFPA, presidente da Associação Corações com Coroa

IN "OBSERVADOR"
06/04/17

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