14/04/2017

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Alguns dos melhores violinos do mundo são fabricados em Portugal

A partir de pedaços de madeira selecionada, e num processo igual ao que era usado há quinhentos anos, serram, limam, raspam, moldam, colam, envernizam. Os fabricantes de violinos criam obras de arte com as quais se podem tocar outras obras de arte, sejam sonatas de Bach ou as Quatro Estações de Vivaldi. Estas são as histórias dos três mais famosos luthiers de Portugal, que atraem violinistas de todo o mundo para comprar instrumentos de exceção.
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Joaquim Capela e António Capela, filho e pai, duas gerações de luthiers, ou fabricantes de violinos. O ofício está na família há quase 100 anos.
A cave do número 55 da Rua do Borja, em Lisboa, cheira a madeira e verniz. Numa das paredes alinham-se as fotografias com dedicatórias de grandes violinistas e violoncelistas. Num armário pesado perfilam-se, pendurados, alguns violinos. Em cima de uma das bancadas de trabalho está, quase pronta, uma viola de arco que uma instrumentista holandesa virá buscar em breve.

Noutra, em frente da qual Christian Bayon está sentado, repousa um pedaço de madeira que ainda não é um violino, mas que vai tomando forma à medida que as finas espirais de madeira se espalham pela bancada e pelo chão. Christian ainda não sabe quem será o dono: só trabalha por encomenda, mas o «casamento» entre instrumento e instrumentista só é feito perto do fim.
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Christian Bayon é francês, vive em Portugal há décadas e é um dos três únicos luthiers do país reconhecidos pela Entente International de Luthiers et Archetiers.
«Ultimamente faço o violino, monto as cordas, escuto-o, e só depois vou à lista de encomendas para o atribuir a um dos clientes que está à espera há mais tempo. Quando construo tenho um tipo de som em mente, mas, no fim, o resultado pode ser um pouco diferente.»

A lista tem 70 nomes e não será acrescentado nenhum tão cedo – o mais antigo estará no caderno há uns sete anos. Até início do ano passado, o tempo de espera para a entrega de um violino de Christian Bayon era de três anos. Para um violoncelo, mais de sete. Mas a leucemia que lhe foi diagnosticada em março de 2016, os tratamentos no IPO e o transplante de medula só lhe permitiram regressar ao trabalho no início de 2017.

Além disso, é uma questão de matemática, diz o homem de 62 anos: «Nos últimos 14 anos fiz cem instrumentos, tenho 70 encomendados. Se aceito mais fico escravo da lista de encomendas. E quero ter liberdade de poder aceitar trabalhos que quero mesmo fazer. Por exemplo, para algum jovem promissor em início de carreira.»

Foi a vontade de trabalhar para solistas famosos e com instrumentos valiosos que o trouxe para Lisboa, nos finais do anos 1980, quando se dedicava ao restauro de instrumentos. Não lhe faltava trabalho no ateliê em França, mas não o tipo de trabalho que queria. Estudou as opções e concluiu que o caminho era encontrar uma cidade com muita vida musical e poucos luthiers.

E assim veio ter a Lisboa. Ambicioso mas pouco combativo, admite que o plano era ficar à espera que alguma coisa corresse mal: quando os solistas de passagem por Lisboa tivessem problemas com os instrumentos, viriam ter com ele.

«E isso aconteceu, mais vezes do que o esperado. Tive uma clientela internacional que nunca teria em França e acabei por me tornar o luthier de solistas de Nova Iorque ou de Oslo: as pessoas vinham por falta de opção, mantinham-se porque gostavam do trabalho.»

Mas apesar de se orgulhar dos instrumentos que faz para nomes sonantes e de reconhecer que isso traz fama, sente que o trabalho que faz para músicos ainda pouco conhecidos é mais útil. E exemplifica com o violino que fez há dois anos para Vladimir Spivakov – maestro, um dos principais violinistas da atualidade, fundador da Moscow Virtuosi Orquestra e diretor artístico da Orquestra Filarmónica Nacional da Rússia. «Foi uma honra, mas o Spivakov tinha já 70 anos, uma carreira brilhante, um Stradivarius fabuloso. A vida dele não dependia de um violino meu.»

Já os músicos em início de carreira precisam desesperadamente de um bom instrumento e não têm dinheiro para um Stradivarius. O que nos faz chegar à razão para a lista de encomendas estar fechada: o desejo de ter alguma flexibilidade. «É muito frustrante dizer a um músico jovem que vem ter comigo que terá de esperar três ou quatro anos. Isso é muito tempo na carreira de alguém que está a começar. Poder dar essa ajuda toca-me muito.»

Talvez o toque tanto por ter bom coração, mas também porque sabe o que significa esperar tanto tempo. Aos 20 anos procurava a sua oportunidade como luthier e as portas estavam fechadas. Deu um salto de fé e aos 23 saiu da Marinha francesa, onde se preparava para fazer carreira como mecânico de aviões-caça a bordo de porta-aviões para se dedicar à construção de violinos. Mas teve de esperar até ter a sua oportunidade.
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Três anos a tentar bolsas, financiamentos, alguém que o aceitasse como aprendiz. Três anos sozinho, com um livro sobre construção de violinos aberto em cima da bancada, a aprender de forma autodidata. Dez violinos e três anos depois, conseguiu finalmente mostrar o seu trabalho a Étienne Vatelot – «o» luthier da época em França – e foi esse dia, que descreve como «de conto de fadas» que lhe abriu as portas para ir aprender a profissão, vir a ser assistente de Vatelot e lançar depois a própria carreira.

Há apenas três luthiers em Portugal que fazem parte da Entente Internationale des Luthiers et Archetiers, a sociedade internacional que certifica construtores de violinos e arcos. Christian é um deles, os outros dois, pai e filho, estão a cerca de trezentos quilómetros, numa pequena oficina na vila de Anta, em Espinho.

Aqui o ofício é o mesmo, mas a história é muito diferente. Joaquim Capela trabalha ao lado do pai, António, na oficina que foi outrora do avô, Domingos. Dali partem violinos para todos os cantos do mundo, mas a arte da lutheria foi uma herança de família que começou há quase cem anos. E por acaso.

Corria o ano de 1924 quando o violinista e comerciante de violinos Nicolino Milano entrou numa marcenaria em Espinho. O violino que o italiano trazia consigo precisava de reparação e o homem aliou a necessidade à conveniência: desceu do primeiro andar onde estava hospedado ao rés-dochão, onde o senhorio tinha a marcenaria, à procura de quem lhe desse uma mão.
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O marceneiro, pouco dado a esses labores, disse a frase que havia de traçar a vida de três gerações e colocar Portugal no mapa dos construtores de violinos: «Fale ali com aquele moço, o Domingos, que é muito habilidoso para essas coisas.»

Quem o conta é o filho de Domingos, António Capela, 84 anos, há mais de setenta a construir e reparar violinos, violas de arco e violoncelos. «Foi assim que nasceu a dinastia Capela. O Nicolino ficou encantado com a reparação e o meu pai começou a trabalhar para ele. Em agosto de 1924, aos 20 anos, construiu o primeiro violino e nunca mais parou.»

O nome Capela começou a ser conhecido pelas tunas da região, depois chegou ao Conservatório do Porto e depois às orquestras estrangeiras que passavam pelo Casino de Espinho e espalharam o nome além-fronteiras. Hoje, Rostropovich, David Oistrach e Yehudi Menuhin são alguns dos muitos solistas que tocam com instrumentos Capela.

António seguiu as pisadas do pai e aprendeu o ofício ainda em criança. Já jovem estagiou em Paris e Mirecourt e frequentou a Escola Internacional de Construção de Cremona. O filho, Joaquim, hoje com 50 anos, filho e neto de luthier, seguiu as pisadas dos dois: fez o primeiro violino com 13 anos.

Mesmo tantos anos depois, Joaquim e António garantem que ver partir um violino é como ver partir um filho. Há uma certa melancolia no momento em que se fecha a caixa para o despachar. «Se os instrumentos ficam aqui perto, na Europa, é possível que ainda os torne a ver. No outro dia, apareceu aqui para reparação uma viola de arco que fiz há trinta anos para um concurso na Bulgária», diz Joaquim.

«Mas os instrumentos que vão para os Estados Unidos e para o Japão, que são muitos, nunca mais os vejo. E isso causa uma certa tristeza.» E como se passa, afinal, de pedaços de madeira para um violino? Começa precisamente com a escolha dos pedaços de madeira, diz Joaquim Capela. «O fundo, as ilhargas, a cabeça e o braço do violino são madeira de ácer, o tampo é pinho dos alpes italianos.

Depois, escolhe-se o molde, serra-se a madeira e, com plainas, goivas, formões e facas dá-se o contorno e cola-se as peças umas às outras. No fim, enverniza-se.» Dito assim parece fácil. «São precisos bons olhos, boas mãos e bom ouvido musical.»

António Capela garante que há outro «segredo», este, pouco falado: o verniz. «Às vezes ia a Itália e levava violinos para mostrar aos meus colegas. Eles admiravam-nos, experimentavam e depois vinha a pergunta: «Como é que fazes o verniz, Capela?» «E eu respondia: ‘Da mesma maneira que tu fazes o teu.’” E ri-se. «O verniz é o segredo de cada construtor. É importantíssimo na sonoridade do instrumento.» Naturalmente que não nos conta o seu.

Da mesma forma que também não nos contam por quanto vendem os violinos que fazem. Há um valor fixo mas nunca o divulgam para o público em geral. «Quem não é músico tem alguma dificuldade em compreender o valor dos instrumentos, o número pode parecer absurdo», diz Joaquim Capela. «Mas os músicos que vêm ter connosco, por norma já sabem qual é o valor quando nos procuram.»

Já Christian Bayon não tem problemas em partilhar os valores que cobra: vende cada violino por vinte e quatro mil euros. Trabalha sobretudo para a Europa e Rússia e faz questão de um encontro pessoal para entregar o instrumento. Do seu atelier não saem violinos em caixotes.

Também ele sente uma certa quebra de energia quando termina um instrumento – chama-lhe o seu baby-blues – mas garante que não há tristeza nessa partida porque trabalhar a madeira é apenas um caminho para chegar ao que realmente importa: os músicos e a música. «É quando chega às mãos do instrumentista que a verdadeira vida do violino começa. Até lá é só madeira. O melhor instrumento do mundo, sem um músico, não serve para nada.»

Encomendas por telefone também não aceita. Os músicos vêm, ficam dois dias, conversam sobre música e sobre o som desejado, experimentam violinos. E, antes da sua chegada, Christian já ouviu e viu todo o material áudio e vídeo que encontrou sobre o músico. «Ouço-os. O que dizem e como tocam. Tenho de conseguir perceber o que o cliente quer para, tecnicamente, conseguir trabalhar a madeira de forma a conseguir o som que pretende.»

STRADIVARIUS: MITO OU REALIDADE? 
Afinal, os violinos e violoncelos Stradivarius e Guarneri del Gesù, feitos por estes construtores em Cremona, Itália, nos séculos XVII e XVIII, e que chegam a ser vendidos por mais de dois milhões de euros, são ou não os melhores do mundo? O segredo está na madeira, que adquiriu propriedades melhores porque o período entre 1645 e 1715 foi especialmente frio, dizem uns.

O segredo está no verniz, uma fórmula secreta que ninguém conseguiu ainda replicar, dizem outros. 

O segrego está nos fungos da madeira, acrescentam agora outros – sobretudo desde que na Suíça construíram violinos com madeira atacada por fungos geneticamente modificados que conseguem reproduzir a sonoridade dos «Stradi». Ou talvez o segredo fosse «apenas» luthiers geniais.

Mas os Stradivarius e os Guarneri, bem como outros instrumentos antigos, ficam atrás de violinos de construção recente em testes cegos. 

Um artigo publicado em 2014 na revista The Proceedings of the National Academy of Sciences revela que, quando questionados sobre se estavam a tocar um instrumento novo ou antigo, os músicos que os testaram – grandes nomes a nível mundial – acertaram 31 vezes, mas erraram 33.
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 Mito ou não, são instrumentos valiosíssimos. O violoncelo Stradivarius Chevillard – Rei de Portugal, construído em 1725, é, que se saiba, o único Stradivarius em Portugal e está atualmente no Museu da Música, classificado como tesouro nacional. Apenas sai do museu em ocasiões especiais, com segurança 24 horas por dia e escolta policial. O luthier Christian Bayon, que faz a manutenção do instrumento desde os anos noventa, também costuma estar presente.

Mas este instrumento também passou pelas mãos dos Capela. Em 1969, Domingos e António fizeram a reparação do violoncelo, numa altura em que as medidas de segurança eram menores. Quando foram visitados por um repórter do Diário de Notícias (que referiu a reparação que estavam a fazer e o grande valor do instrumento), António e Domingos Capela trataram de acabar o mais rápido possível o trabalho com medo de um roubo. Enquanto não o devolveram, Domingos dormiu com o violoncelo no quarto.

* Artistas fabulosos, tão grandes como os músicos que tocam as peças da arte.

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