02/03/2017

VIRIATO SOROMENHO MARQUES

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Esperança com os pés na terra

Podemos discordar sobre muitas facetas da nossa condição humana, mas há um amplo consenso sobre o papel central da esperança. Sem a perspetiva de um futuro melhor, a existência tornar-se-ia sufocante e insuportável. Durante milénios, o Ocidente projetou a esperança num horizonte transcendente, associado à religião. Às igrejas coube um longo monopólio na organização e gestão da esperança da maioria esmagadora das pessoas e dos povos. 

A grande rutura do século XVIII, com as Luzes, foi a secularização da esperança. O futuro passou da teologia para o domínio das ciências e das técnicas. Passou da espera pela salvação para a realização tecnológica. As Luzes, dominadas por uma espécie de fervor racionalista, sustentavam que a verdadeira esperança só poderia triunfar abolindo a superstição, isto é, a falsa esperança alimentada pelas trevas da ignorância e do analfabetismo. 

Na verdade, os nossos níveis de conforto e qualidade de vida do século XXI são incomparáveis com os do passado recente. Hoje, qualquer mulher pobre, num país desenvolvido, tem muito mais probabilidades de não perder os seus filhos no parto do que o teve a rainha Victoria, senhora do maior império mundial. Todavia, a superstição, longe de ter sido abolida, encontrou novas formas de contaminar a esperança na nossa idade tecnocientífica. Recentemente, a NASA revelou a existência de sete planetas com potencialidade para suportar formas de vida, no sistema TRAPPIST-1. É curioso que a reação mais comum, refletida nas redes sociais, glorificava as possibilidades de eventual colonização humana desses novos planetas. Na verdade, desde o fim do programa Apollo (1975) que as viagens espaciais tripuladas entraram em hibernação. A astronomia tem aumentado imenso os seus conhecimentos, mas é, essencialmente, uma nobre ciência contemplativa. Ainda não foi possível viajar até Marte, quanto mais fazer uma viagem de 40 anos-luz!

Uma das raízes das crenças que alimentam a superstição moderna reside na falta de diálogo e cooperação entre as diferentes ciências. A revista Lancet publicou recentemente um estudo com projeções demográficas para 35 países desenvolvidos, tendo como horizonte o ano 2030. Os resultados apontam para perspetivas de notável crescimento da expectativa de vida. Por exemplo, na população feminina nascida na Coreia do Sul a partir desse ano, a expectativa de sobrevivência ultrapassa os 90 anos (87 anos para Portugal). 

O que os estudos demográficos não acentuam com ênfase suficiente é que os pressupostos de que partem são frágeis e podem ser alterados pelo curso incerto do mundo. Por exemplo: a mudança político-económica na Rússia, entre 1988 e 1994, fez cair em cinco anos a esperança de vida (de 69 para 64). Imaginemos o incremento da mortalidade, regional e global, que poderá resultar das crises humanas e das explosões bélicas, causadas pelo agravamento acelerado das condições ambientais e climáticas... A demografia faria bem em escutar as ciências da Terra, a estratégia, as ciências políticas. Tanto o caso dos novos planetas como o das projeções demográficas revelam-nos como a verdadeira esperança necessita, além do conhecimento, também da virtude da coragem. Da capacidade de olhar a realidade de frente, sobretudo quando ela é o contrário do que desejaríamos. 

Pelo contrário, a superstição recusa a principal lição do conhecimento científico contemporâneo: submetida por nós à mais vil das usuras e espoliações, a nossa Terra é, contudo, o nosso tesouro mais precioso. Ela é a nossa casa comum. Única e insubstituível.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
01/03/17

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