24/02/2017

PEDRO NORTON

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Eutanásia: debate 
ou 
batalha de preconceitos?

A eventual despenalização da eutanásia tem de ser o resultado de um debate amplo, profundo, tolerante

Se há assunto relativamente ao qual, muito mais do que com inabaláveis certezas, parto com verdadeiras perplexidades, esse assunto é a eutanásia.

Parto para o debate, não o escondo, a partir de uma posição tendencialmente favorável à despenalização da eutanásia. Essa minha posição de partida radica na crença na primazia do valor da liberdade individual. Acredito que esta é uma matéria do domínio do privado no seu sentido mais profundo e mais radical. Reclamo o direito a dispor da minha liberdade sempre que ela não contenda com a liberdade de mais ninguém. Reclamo, para ser absolutamente claro, o direito a dispor da minha vida.

Isto dito vamos às dúvidas e às perplexidades. A liberdade condicionada não é verdadeira liberdade.

No quadro de uma decisão tão radical, obviamente irreversível, como é a de por termo à sua própria vida, esta questão ganha uma importância vital. E a verdade é que é difícil garantir, em absoluto, os pressupostos para essa liberdade sem condições. Alguns são óbvios. Como se garante, sem margem para dúvidas, que alguém está mentalmente são? Como se garante que não estamos perante um estado de desespero momentâneo? Como se garante que estamos perante um diagnóstico muito sólido sobre as perspetivas de vida do paciente? Outros parecem-me menos evidentes (e não os vejo – ao que julgo saber – endereçados na proposta de lei do Bloco). Como garantimos que, como sociedade, investimos o suficiente em cuidados paliativos para que possamos ter a certeza, em face de um caso concreto, que nada mais pode ser feito, do ponto de vista científico, para eliminar ou minorar a dor de um doente?

São perguntas para as quais são necessárias respostas. Mas o meu incómodo vai mais longe. Não estou seguro de ser capaz de elencar todas as dúvidas relevantes. Gostava, digo-o com toda a humildade, de ver a minha posição debatida, contraditada, atacada. Através de um debate prolongado e sereno. Para reforçar a minha convicção de partida, para a matizar ou, quem sabe, para a alterar.

Chegamos aqui aquele que me parece ser o cerne da questão. 
O debate suscitado é bem-vindo. Mas é um debate para o qual não podemos partir com preconceitos fixos. É um debate que não pode ser transformado num debate de esquerda contra direita. Muito menos num debate partidário. A eventual despenalização da eutanásia não pode ser a vitória de uns ou a derrota de alguns. Tem de ser o resultado de um debate amplo, profundo, tolerante. Para o qual partamos com uma vontade séria de ouvir argumentos – científicos, éticos, sociais – que não conhecemos ou com que não pensamos simpatizar.

O crime, o verdadeiro crime, seria fazer deste debate uma barulheira caótica e apressada em que ninguém quer verdadeiramente ouvir ninguém. Em que não se abre o espaço à ponderação, à reflexão, à dúvida como formas de maximizar as probabilidades de uma deliberação e de uma decisão informadas. Seja através de um voto no parlamento, seja através de um referendo.

O meu apelo, se me é permitido fazer um, é que debatamos o processo antes de debater a substância. Não há razão para que não possa haver um amplo consenso sobre a forma e os timings como queremos discutir um tema tão sensível. A decisão sobre a substância separar-nos-á seguramente. É da natureza da própria problemática. Que não fiquem é dúvidas sobre a forma esclarecida a que a ela se chegou. Seja ela qual for.

IN "VISÃO"
22/02/17

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