02/12/2016

NUNO CINTRA TORRES

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Internet e democracia: 
mudança fundacional

Tal como o tecido económico está em processo de transformação e adaptação à economia digital, também a democracia liberal precisa de ser refundada para sustentar com sucesso as instituições do Estado democrático na nova era da Internet.

“Agora, através do Facebook e Twitter (…) há permissão social para [dar a volta aos parâmetros do discurso aceitável]. Há a permissão social para esse tipo de discurso. Mais, através desses mesmos meios sociais pode encontrar-se pessoas que concordem consigo, que validam esses pensamentos e opiniões. Isto cria toda uma nova estrutura de permissão, um sentido de afirmação social para o que antes se considerava ser impensável. É uma mudança fundacional.”

Assim falou Barack Obama sobre as redes sociais na Internet numa série de conversas com David Remnick, da revista The New Yorker. O presidente dos EUA reafirma a sua capacidade de distanciamento e de análise fria dos acontecimentos e das pessoas – incluindo a apreciação que faz dele próprio. É um texto extraordinariamente interessante pelo que revela da capacidade de análise e de pensamento estruturado virado para o futuro. O momento em que as conversas decorreram é também extraordinário. Remnick acompanhou Obama em viagens de avião, autocarro e comícios durante os últimos dias da campanha eleitoral, quando ainda se admitia a vitória de Hillary Clinton, e nos primeiros dias depois da eleição de Donald Trump, designadamente na Sala Oval.

A primeira campanha de Obama em 2008 foi também a primeira a utilizar com eficácia o poder da Internet para mobilizar o eleitorado e captar donativos. Mas Obama diz que foi igualmente a última que decorreu num contexto informacional, em que os mass media tradicionais – imprensa, rádio e televisão – ainda dominavam. Destes, apenas a televisão ainda se pode considerar um meio de massas, embora em perda constante de audiência. É o único que ainda consegue congregar milhões de pessoas ao mesmo tempo, mas esse poder está cada vez mais concentrado num ou dois tipos de eventos e programas, novelas e desporto – e mesmo este em perda de audiência.

Poderá a Internet ser considerada um mass medium? Alguns dos seus conteúdos certamente alcançam milhões de pessoas, embora de modo disperso e não todos ao mesmo tempo. Mas a principal questão não reside apenas no alcance da Internet, que é ilimitado, mas sim nos conteúdos projetados sem a intervenção do mediador profissional: o jornalista. A Internet fomenta o desenvolvimento de tribos e de seitas, para além de facilitar a atividade maliciosa de ‘hackers’ e de propaladores de invenções. No Brasil verificou-se que notícias falsas sobre o processo contra Lula da Silva tinham tantos leitores como as notícias verdadeiras. Na Macedónia, uma empresa especializou-se em fabricar e divulgar mentiras pró-Trump e anti-Clinton.

Quando surgiu, a Internet foi saudada como instrumento de liberdade que anunciava o fim das fronteiras entre Estados. A Internet seria um supra-Estado. Hoje, quando perto de um quarto da humanidade utiliza o Facebook – instrumento de eleição para alimentar crises psicóticas, propalar conspirações e alimentar incontáveis tribos –, a Internet não se tornou um Estado com os instrumentos de governação próprios dos Estados. É antes um vasto território selvagem onde pontificam alguns potentados transnacionais incontroláveis e incapazes de conter quem os utiliza, como o Facebook, Google e Twitter, utilizados por hordas anarquistas, niilistas e de uma variedade de extremistas, islâmicos e outros. Esta semana, um estudo académico britânico revelou que, no mês seguinte ao assassinato de Jo Cox, deputada britânica apoiante do Remain, foram produzidos 53 mil tweets por, pelo menos, 25 mil indivíduos a celebrar o “heroico” assassino e a incitar mais ações “patrióticas” como aquela.

Na Internet dominam os que têm os meios para dominar e utilizar a tecnologia, e onde os media profissionais têm a custo vindo a conquistar terreno. A procura da verdade – a análise, a contextualização, o contraditório, a confirmação das fontes e dos factos – perdeu relevância sendo. Agora (de novo) o mensageiro é ele mesmo a própria mensagem. A tecnologia passou a ser vista com suspeição por muitos dos que defendem a liberdade. Um conhecido investidor de Nova Iorque disse a propósito da eleição americana que a Internet colocou a democracia em causa. O Facebook defende-se e diz que está a montar um sistema de verificação da idoneidade das informações para eliminar as “notícias” falsas. É uma atividade complexa que requer a intervenção de inteligência artificial e humana, mas, provavelmente, impossível de ser eficaz. É preciso verificar as fontes, uma a uma. E a partir desse momento Facebook tornar-se-á num publisher, atividade que Zuckerberg afirma não pretender mas que inevitavelmente irá ter que exercer.

A utilização do Twitter por Trump, amplificada e validada pelos media profissionais – entretidos pela novidade, entretendo a populaça e maximizando audiências, em particular a TV por cabo – revelou todo o poder da comunicação eletrónica, diretamente para os eleitores sem intermediação jornalística. Segundo Neil Munshi, do Financial Times, Trump virou do avesso o mundo político, a indústria das sondagens, os media, os mercados de previsões, os ‘establishments’ republicano e democrata e a totalidade da ordem geopolítica ao conseguir a mais improvável vitória na história dos EUA. Tal como conseguiu arrebatar a presidência a Clinton apesar desta ter tido mais de dois milhões de votos.

Importa perguntar qual é o impacto da pulverização informacional, não mediada, imbuída de coisas verdadeiras e outras falsas, no sentido de voto dos eleitores. Na prática, deixámos de saber o que pensam. Muitos eleitores americanos terão tido vergonha de dizer ao inquiridor que iriam votar Trump, ou seja, mentiram sobre qual seria o sentido do seu voto. Quando mais de 40% do eleitorado (branco) se comporta como se de uma minoria se tratasse e vota em massa em Trump, e isso não é detetado pelos ‘pollsters’ e pelos media – que viviam numa bolha artificial e autofágica –, parece-me certo que, como dizem alguns republicanos, o modo de funcionar dos ‘pollsters’ caducou.

A eleição americana, como antes o Brexit e agora as primárias republicanas em França, lançaram o descrédito sobre as empresas de estudos de opinião. O que irá passar-se nas eleições em França e na Alemanha e no referendo em Itália? A indústria de estudos de opinião, elemento essencial das democracias modernas, precisa de empreender a refundação que os media iniciaram. De facto, tal como o tecido económico está em processo de transformação e adaptação à economia digital, também a democracia liberal precisa de ser refundada para sustentar com sucesso as instituições do Estado democrático na nova era da Internet.

* Professor Universitário

IN "OJE-JORNAL ECONÓMICO"
29/11716

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