08/12/2016

FRANCISCO MENDES DA SILVA

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A religião da dívida

No congresso do último fim-de-semana, o PCP insistiu na sua tese de que Portugal, de uma forma mais ou menos negociada, deve repudiar parte da dívida pública. O que dá razão à qualificação popular do comunismo como uma religião.

Tocqueville, que admirava na democracia americana a religiosidade dos seus políticos, dizia que quem acredita que a recompensa da vida terrena só nos espera na vida além da morte é alguém que tenderá a pensar as políticas consoante os efeitos estruturais e de longo prazo, não segundo as suas contrapartidas imediatas.

No PCP, que também se define pela demanda de um futuro longínquo, passa-se algo semelhante. Com uma diferença: como há séculos que o capitalismo insiste em não ser derrubado pelas suas "contradições internas", a esperança dos comunistas portugueses nos "amanhãs que cantam" já é mais uma melancolia inconsequente do que um programa. É por isso que o PCP, ao mesmo tempo que diz não haver futuro com esta dívida pública, apoia um Governo do PS que jamais tomará uma iniciativa sobre o assunto. Não é para esta vida que os nossos comunistas trabalham.

Diga-se em abono da verdade que saber o que o PS pensa realmente sobre a questão da dívida requer um esforço bíblico de exegese. Dos socialistas têm vindo posições bastante diferentes, consoante a circunstância política. Talvez o PCP veja nessa relação sinuosa e oportunista com o tema uma abertura para os seus próprios aventureirismos.

Até 2011, o PS defendia que a dívida pública era por natureza virtuosa e sustentável. Só por um atavismo salazarento se podia dizer o contrário. Basta lembrar a campanha para as legislativas de 2009 e como José Sócrates respondia aos alertas da oposição de direita sobre os riscos do excesso de endividamento (em especial a forma reles com que destratava Manuela Ferreira Leite).

Com a chegada da troika e do Governo PSD-CDS, o PS, numa espécie de epifania, passou a achar finalmente que a dívida pública portuguesa é um problema. Escreveram-se manifestos, conspicuamente assinados por notáveis dirigentes e apoiantes socialistas, e andou-se quatro anos a defender que o crescimento do peso da dívida no PIB do país era um dos grandes falhanços da liderança de Passos Coelho.

Foi uma estratégia mentirosa, emblemática do que entretanto se começou a chamar de "política da pós-verdade". O aumento da dívida não foi culpa da "austeridade", mas da ameaça de bancarrota a que o PS conduziu Portugal - com o inevitável resgate, os seus efeitos recessivos, o empréstimo de emergência e a obrigação de inclusão das empresas públicas e das PPP no perímetro da dívida. Para além disso, uma vez que a dívida é uma realidade dinâmica, antes de começar a regredir o seu crescimento teria necessariamente de abrandar. E foi ainda durante o anterior Governo que a dívida começou, de facto, a regredir.

Seja como for, esta preocupação com o assunto já era um avanço saudável relativamente ao keynesianismo desregrado do passado. E um avanço do qual, aliás, corremos o perigo de ainda vir a ter saudades, já que com o actual Governo o peso da dívida no PIB voltou a crescer para níveis recorde.

Ou seja, voltámos ao antigamente, ao PS pré-2011, que exerce o poder afundando o país em dívida e que parece acreditar que esta é eternamente gerível, que a disponibilidade dos credores é eterna e que o dinheiro cai do céu. Vendo bem, também é uma forma de religião.

Advogado

IN  "JORNAL DE NEGÓCIOS"
06/12/16

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