28/11/2016

RUI PERES JORGE

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Sr. governador, 
iletrado e ignorante me confesso

O governador do Banco de Portugal resolveu transportar o debate político e técnico sobre as falhas no ajustamento do sector financeiro para o plano pessoal. As críticas não são ideias e pontos de vista… são ofensas. Os críticos não são interlocutores… são ignorantes e iletrados. A posição de Carlos Costa não é só surpreendente, é também preocupante pela falta de capacidade de auto-crítica que outras instituições já foram capazes de fazer.

A abordagem à banca nacional adoptada pela troika, pelo governo anterior e pelo Banco de Portugal foi optimista, errou ao considerar que os problemas em Portugal estavam apenas concentrados no sector público e poupou os bancos aos incómodos de intrusões mais sérias do supervisor e de intervenções públicas. É hoje evidente que isso custou muito dinheiro ao adiar resoluções e recapitalizações que entretanto ficaram mais caras, e que ainda nos está a custar um dos sistemas financeiros mais frágeis da Zona Euro, com implicações negativas por exemplo na concessão de crédito.

Nos "Os 10 erros da troika em Portugal", que escrevi no primeiro semestre de 2014, defendi isso mesmo. Os desastres do BES e Banif que ocorreram depois vieram confirmar o diagnóstico, embora tenha pecado por optimismo quanto às consequências da abordagem liderada em boa parte por Carlos Costa – que, sublinhe-se, entrou no Banco de Portugal em 2010 para recuperar a imagem do supervisor já com o aviso das más práticas na banca nacional evidenciadas pelo BPN, BPP, e pelo caso das off-shores do BCP onde Carlos Costa de resto trabalhou entre 2000 e 2004 como director da área internacional.

Aos poucos as instituições da troika têm vindo a reconhecer isso mesmo. Numa intervenção em Abril deste ano em Lisboa, Filip Keereman, chefe de divisão da Direcção-geral Estabilidade Financeira da Comissão Europeia, admitiu que Portugal deveria ter recebido mais que os 12 mil milhões de euros para a banca – que ainda assim, convém sublinhar, o anterior governo gastou apenas pela metade –, defendeu que a avaliação da debilidade do sistema financeiro nacional foi branda, e concluiu (o que, na verdade já se sabia de eventos passados), que perante grandes crises financeiras é fundamental concentrar esforços na limpeza e recuperação da banca. Só assim se consegue acelerar a recuperação após o descalabro económico.

Ideias semelhantes surgiram num relatório publicado esta semana, no qual a Comissão Europeia avalia ao que se passou em Portugal entre 2011 e 2014, e concluiu que "apesar do programa ter identificado correctamente os assuntos chave que o sector bancário enfrentava, a escala do problema foi subestimada e resultou em implementação de políticas que deixaram nos bancos demasiadas fragilidades no final do programa", chegando até a dizer que "uma abordagem mais determinada da supervisão poderia ter promovido ajustamentos" no BES e no Banif durante o programa, de resto como também na CGD.

O FMI, por seu lado, numa avaliação que precedeu a de Bruxelas, considera que "um escrutínio mais profundo das práticas de supervisão, seguido de medidas adicionais de fortalecimento da supervisão teriam beneficiado o programa". Para Washington os testes de stress do Banco de Portugal foram inconsistentes nas metodologias, e optimistas nos pressupostos. E em relação ao BES, teria mesmo sido necessária "uma abordagem mais interventiva da supervisão (…) mais reconhecimento de riscos do grupo, e mais acções preventivas, incluindo na governance do grupo". 
  
Em vez disso, e sendo já evidente a gravidade dos problemas no BES pelo menos desde o final de 2013, Carlos Costa, com o apoio do Governo e do Presidente da República, e a dormência da troika e da CMVM, convidaram os investidores a colocar mil milhões de euros no banco em Junho de 2014, para os perderem dois meses depois na implosão de Agosto. 

As avaliações do FMI e da Comissão Europeia podem ainda ser complementadas com as conclusões da análise do Departamento de Avaliação Independente do FMI, uma espécie de auditor interno do Fundo que, com ajuda de Nicolas Véron, investigador de dois dos ‘think tanks’ mais influentes do mundo (Bruegel em Bruxelas, e Peterson Institute em Washington) critica o FMI por não ter pressionado mais Carlos Costa, aceitando a perspectiva ideológica vigente em Lisboa de que os problemas em Portugal não estavam na banca, nem no sector privado, mas somente nas contas públicas.

Será justo reconhecer que não podemos ser alheios às circunstâncias em cada momento – e quanto a isso, quem está de fora, tem obrigação de dar algum benefício a decisões complexas e difíceis. Mas uma coisa é contextualizar a incerteza, outra é entrar em negação. É este o caminho que Carlos Costa parece querer seguir ao qualificar as críticas como "uma ofensa a quem fez o programa de ajustamento", "uma ofensa ao Banco de Portugal" e reveladoras de "grande ignorância para não dizer iliteracia".

Assim sendo, não me resta senão confessar-me ignorante e iletrado, tendo por conforto o facto de não estar sozinho.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
24/11/16

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