10/09/2016

MARINE ANTUNES

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“É normal as crianças 
terem medo do escuro... 

O que não é normal é os adultos terem medo da luz.”

A criança dá tudo. Ama com tudo. Vive com tudo. Mesmo que tenha “todo o tempo pela frente”, faz como se não o tivesse. E eu quero dar assim. Mesmo que já me tenham falhado, mesmo que me magoem depois.

A criança brincava, como se o dia de amanhã não fosse existir. Ela brincava com tudo, corria tanto, quase em aflição, saltava muros, caía e levantava-se, chorava e ria, suava e suava e voltava a saltar. E ainda só eram dez da manhã. A criança brincava, como se o dia de amanhã não fosse existir - mesmo sem ter noção da efemeridade da vida ela vivia como se soubesse o que era a morte. Mas não sabia. Ainda não sabia. A criança brincava, como se o dia de amanhã não fosse existir porque brincar era tudo o que ela mais gostava de fazer. E por gostar tanto, começava a brincar, logo ao acordar, extasiada por ser dia, extasiada por ir fazer aquilo que mais queria fazer. E por gostar tanto, brincava a tudo o que sabia brincar, brincava e nem reparava que tinha fome, que tinha sede, que tinha sangue nos joelhos. Brincava enquanto já tremia de frio, brincava até já não se ver a luz do dia, brincava até quando já estava na cama, para adormecer melhor.

A criança ficava exausta. Cansa dar tudo por tudo. A respiração ofegante, o cabelo desgrenhado, os braços doridos. Cansava ser tudo ao mesmo tempo - médico, professor, camionista, cansava inventar palavras novas, todos os dias, cansava inventar jogos, cansava correr para apanhar ninguém. Cansava dar tudo e até doía, mas, mesmo assim, era assim que a criança era feliz. Brincava com tudo, a tudo o que sabia, mesmo que o fizesse sozinha. Mesmo que não lhe dissessem que brincava bem, mesmo que não fosse recompensada com a medalha da “criança mais brincalhona”, mesmo que ninguém estivesse a ver. Mesmo que ninguém brincasse com ela.

A criança só sabia brincar assim.

E os adultos, que invejavam a sua entrega à brincadeira (mas que não o admitiam), diziam-lhe que um dia, quando a criança fosse maior, deixaria de brincar com tanta vontade. Diziam-lhe para aproveitar aquela fase, porque aquela fase teria um fim. Diziam-lhe que, quando ela compreendesse a verdadeira dor, quando fosse magoada pela vida, já não se entregaria assim.

Os adultos já não se entregavam a nada. Já se tinham dado na infância, aos sonhos, à vida, ao amor para sempre, à brincadeira e agora, na vida adulta, depois de magoados e desiludidos já não se entregavam a nada. E passavam a medir o que davam no amor, nos afetos, nas relações. Passavam a contar o número de vezes que já tinham tentado, passavam a deixar de elogiar o outro, porque “o elogio estraga”, passavam a não dizer que amavam, mesmo quando amavam, porque “era cedo demais”. Passavam a deixar de surpreender, “porque ainda ontem o fiz”, passavam a oferecer um mimo apenas nas datas festivas, “porque o seu aniversário é só daqui a seis meses”, passavam a ser mais rudes e mais práticos, “porque já o (a) conheço há muito tempo”. E a criança não entendia. Não entendia como aceitavam eles a mediocridade, mesmo sem conhecer o termo. Não entendia porque comiam chocolate sem sujar a boca, limitando a delícia que é saborearmos com ferocidade. Não entendia como não faziam juras de amor, se jurando, o amor ganha mais força, não entendia o riso contido e o choro disfarçado, se depois de chorar, nos sentimos tão bem.

A criança dá tudo. Ama com tudo. Vive com tudo. Mesmo que tenha “todo o tempo pela frente”, faz como se não o tivesse. E eu quero dar assim. Mesmo que já tenha crescido, mesmo que já me tenham morrido, mesmo que já me tenham falhado, mesmo que não me dêem de volta, mesmo que me achem tola, mesmo que me magoem depois. Quero adormecer a saber que dei tudo, quero viver a saber que vivi com tudo, sem medo de perder o meu tudo, que no fundo, é tão nada se não for completo. Quero o meu coração curado. Quero oferecer o amor completo, sem hipótese de devolução, sem medo da rejeição, sem cobrar o envio, que me saiu caro e que não voltou depois. Quero ser inteira Sem a minha metade e inteira Com a minha metade. Inteira sempre, mesmo que com a idade, me digam para dar menos.

Da vossa,
Marine Antunes

IN "i"
08/09/16

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