20/09/2016

GISA MARTINHO

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O dote da City

Cada vez é mais claro que o ‘Brexit’ tem o dom de transformar o negócio da City num dote a que nenhum país europeu é indiferente

No dia em que os britânicos votaram a favor do divórcio com a União Europeia, meia City londrina deu os primeiros passos para acionar os planos B, de 'Brexit'. Gestores de hedge funds, banqueiros e investidores não querem ficar sem acesso ao mercado único europeu de 500 milhões de pessoas e preparam o que pode ser o maior processo de deslocalização da indústria financeira para o outro lado do Canal da Mancha e, com ele, o arrastar de cerca de cem mil empregos. O colosso HSBC, por exemplo, foi o primeiro a avisar que vai transferir mil empregos para Paris.

Ainda é muito cedo para prever a derrota dos hábeis negociadores de Downing Street. Mas não é tarde para antecipar que mais que um pesadelo, a saída britânica da UE pode ser uma oportunidade para a City. A Velha Europa há muito que disputa o negócio bilionário londrino sem grande sucesso e, talvez por isso, o tenha tentado minar ou limitar - através da pressão política em Bruxelas ou através de processos judiciais. O Banco Central Europeu perdeu recentemente um processo em tribunal para importar a atividade financeira em euros de Londres para os países da moeda única. O argumento da instituição liderada por Mario Draghi sai agora reforçado: o Reino Unido não só fica fora do euro como vira as costas à máquina e estrutura institucional europeia. E, desta vez, os europeus estão pouco dispostos a consentir cláusulas de exceção ou um regime especial para o governo de Theresa May. A ideia britânica de criar um ‘passaporte de direitos’ para banqueiros já foi barrada no continente e os avisos sucedem-se, o último de Juncker no discurso do Estado da União: “Se quiserem livre acesso ao mercado interno, têm de aceitar as liberdades fundamentais, incluindo a dos trabalhadores”.

O caminho vai ser longo até à saída efectiva do Reino Unido da UE, mas é cada vez mais claro que o ‘Brexit’ tem o dom de transformar o negócio da City num dote a que nenhum país europeu é indiferente. O êxodo dos banqueiros vai depender das ofertas e garantias negociadas num ambiente que costuma ser opaco, cheio de ‘canais clandestinos’ e um regimento de lobistas. As duas cidades do eixo franco-alemão, Paris e Frankfurt, são as favoritas caso Londres acabe mesmo por ficar fora de jogo. Ambas as cidades pertencem a países com o maior poder de decisão, peso e influência na União Europeia, capazes de desempenhar o papel que até agora pertencia a Downing Street. O papel de interferir nas regras da supervisão financeira, de limitara aprovação de novos rácios, de atenuar os limites aos bónus das administrações ou travar a introdução de uma taxa Tobin. No fundo, de bloquear as muitas tentativas de regular, a sério, o setor. A imagem da indústria financeira como o vilão da crise já lá vai. O risco de marcha atrás no quadro regulatório e a revisitação sofisticada e polida das regras para níveis pré-subprime existe. O mérito da mão invisível está de regresso.

* Editora executiva

IN "VISÃO"
14/09/16

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