23/09/2016

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HOJE NO
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Missão possível: 
encontrar uma cura para 
o Alzheimer numa década

É a principal demência em todo o mundo e afeta 46 milhões, quase cinco vezes a população de Portugal. Na semana em que se assinalou o Dia Mundial do Alzheimer, fomos à procura das respostas que estão a entusiasmar os cientistas
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Ela está sentada na cama com uma expressão indefesa. Como se chama? “Auguste”. Apelido? “Auguste”. Como se chama o seu marido? “Auguste, acho”. O seu marido? “Ah, o meu marido”. Olha como se não compreendesse. É casada? “Com Auguste”. Senhora D.? “Sim, sim, Auguste D”. Há quanto tempo cá está? Parece demorar a responder. “Três semanas”. O que é isto? Mostro-lhe um lápis. “Uma caneta”. Uma mala, chaves, cigarros são identificados corretamente. Ao almoço come couve-flor e porco. Questionada sobre o que está a comer responde espinafres.

Alois Alzheimer conheceu Auguste Deter em Novembro de 1901 e esta foi uma das primeiras conversas que registou. Por esta altura, o psiquiatra estaria longe imaginar que ia entrar para a história e que aquele seria o primeiro caso da doença que até hoje mantém o seu nome. Aos 51 anos, a mulher dera entrada num hospital para doentes mentais em Frankfurt com perda de memória, desorientação, comportamento imprevisível e dificuldades psicossociais, sem noção do tempo. O marido contou que por vezes parecia um vegetal, noutras gritava durante a noite, o sofrimento repetido por muitas famílias que lidavam com uma doença sobre a qual na altura nada se sabia.

Alzheimer acompanhou o caso durante três anos, até se mudar para Munique. Entrevistou Auguste várias vezes e deixou o hospital intrigado. As respostas chegariam em 1906, quando a doente morreu. Curioso sobre a organização do cérebro, pediu para analisar os tecidos e descobriu “estruturas peculiares” que poderiam explicar os sintomas.

O médico alemão foi o primeiro a ver os dois problemas que passados 110 anos continuam a mobilizar os cientistas empenhados na descoberta de uma cura para a doença que hoje afeta 46 milhões de pessoas em todo o mundo. Por um lado, as “placas senis” - depósitos de proteína beta-amilóide e que interrompem a comunicação entre os neurónios e levam a perdas cognitivas. Por outro, estruturas atípicas dentro das próprias células cerebrais que parecem precipitar a sua destruição - os novelos neurofibrilares entretanto ligados a uma forma tóxica da proteína tau, molécula que normalmente garante que as nossas células mantêm um esqueleto intacto mas na versão presente na doença de Alzheimer é demolidora. Mais de um século de depois, os tratamentos eficazes podem estar próximos?

Uma corrida de fundo 

Foi preciso passar mais de meio século após a morte de Auguste para surgirem as primeiras pistas sobre o que estaria por detrás da demência do tipo alzheimer e nos anos 1980 a investigação começou a acelerar. Em 1984 foi identificada a proteína beta-amilóide e dois anos mais tarde a proteína tau. No início da década de 90 os cientistas descobriram o primeiro gene ligado à doença e hoje são conhecidos cerca de 19 mutações que podem influenciar o seu desenvolvimento.

Apesar de haver ensaios em modelos animais há 20 anos e de a indústria farmacêutica investir milhões nesta área, segundo um relatório recente da organização Alzheimer’s Impact Movement, entre 1998 e 2014 houve 123 tratamentos em teste que acabaram por ser descartados por terem demasiados riscos ou não apresentarem os resultados esperados. Neste período só apareceram quatro medicamentos capazes de diminuir ligeiramente os sintomas, sobretudo repondo artificialmente neurotransmissores importantes para o funcionamento do cérebro que diminuem com a desregulação das células causada pela doença. Luís Cunha, diretor do serviço de neurologia do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, que acompanhou essa novidade nos tratamentos nos últimos 30 anos, admite que houve algumas melhorias, mas continua-se à espera de uma solução eficaz de uma corrida de fundo da ciência básica. O médico compara o cérebro a um piano que quando funciona normalmente é tocado tecla a tecla para formar uma melodia. “As células disparam no momento certo”. Com produtos que artificialmente repõe os neurotransmissores, os únicos tratamentos disponíveis destinados apenas a controlar os sintomas, é como se tocassem todas as teclas em simultâneo. A estratégia tem um prazo de validade, “enquanto existem células saudáveis no cérebro dos doentes”, assinala o médico. E, apesar de por vezes os sintomas regredirem, a doença acaba por vencer.

O medicamento que pode virar o jogo 

Se este é o ponto de situação na clínica, nos últimos meses começaram a surgir cada vez mais declarações de otimismo.

Em março a Bloomberg titulava que os 30 anos de corrida para um tratamento do Alzheimer podiam estar a chegar à meta. Em abril foi prometida uma vacina para travar a progressão da doença dentro de cinco anos.

Por cá foi o psiquiatra português e investigador em Londres Tiago Reis Marques a abrir a caixa de Pandora ao admitir numa entrevista que poderá haver uma cura no espaço de cinco a dez anos. Em declarações ao i, o investigador sublinha que neste momento há 93 medicamentos em investigação, motivo suficientes para acreditar numa solução com a salvaguarda de que não se devem criar falsas esperanças nos doentes. Será o entusiasmo partilhado?

Luísa Lopes, investigadora no Instituto de Medicina Molecular com trabalho na área do envelhecimento, admite que cinco anos pode ser um prazo demasiado curto, mas concorda que há um sentimento geral de otimismo entre os investigadores. Rita Guerreiro, investigadora portuguesa em Londres vista como uma das promessas na investigação da doença, acredita que tem havido boas notícias, mas considera precipitado falar de uma cura única para a doença.

Ambas concordam, porém, que houve uma notícia recente que parece ter invertido este jogo de rato e gato dos investigadores com os tratamentos do Alzheimer. No final de agosto, resultados de testes a um novo medicamento divulgados na “Nature” sugeriram que a ideia de que será possível eliminar as placas no cérebro dos doentes pode ser alcançada, o que até aqui, apesar de estudos com animais, nunca tinha tido resultados tão robustos.

Em causa está um medicamento com base em anticorpos humanos que leva o sistema imunitário a atacar os depósitos da proteína beta-amilóide. Ao fim de um ano, os 93 doentes que tomaram a medicação experimental tinham o cérebro menos congestionado e alguns sinais de melhoria nas funções cognitivas, imagens cerebrais de regressão da doença em humanos que nunca tinham sido vistas.

Luísa Lopes salienta que não sendo a ideia nova, até aqui os ensaios do mesmo género tinham sido rejeitados sobretudo devido aos efeitos colaterais graves como encefalites, o que desta vez não se verificou e poderá estar ligado a terem sido usados como base células de idosos saudáveis sem défices cognitivos. “A ideia foi que idosos sem sinal de demência terão algum fator em relação à proteína beta-amilóide que poderia contribuir para um melhor resultado”. Se o tiro foi mesmo certeiro e se a molécula aducanumab garante resultados a longo prazo são para já perguntas sem resposta. Entretanto começaram ensaios clínicos que deverão abranger perto de 3000 doentes e em 2020 serão divulgados novos resultados.

Agir em várias frentes 

Se este medicamento foi o primeiro a levar os investigadores, sempre cautelosos, a admitir resultados surpreendentes, está longe de ser a única expectativa, até porque há outros produtos com o mesmo objetivo em ensaios clínicos e a ciência que estuda o Alzheimer tem diferentes frentes de investigação. Há os cientistas que defendem que tudo começa com a deposição das placas de beta-amilóide, mas também há os que sustentam que o cerne está na desregulação da produção da proteína tau. E tal como há medicamentos em estudo para a primeira hipótese, têm sido procuradas moléculas capazes de corrigir o defeito na proteína que mina os neurónios nos doentes e que tende a aumentar com a progressão da doença - pelo que erradicá-la poderia prevenir de alguma forma os quadros mais graves. Há por exemplo duas vacinas em estudo. A mais avançada, da biofarmacêutica Axon Neuroscience, começou a ser testada em 2013 e também conheceu novidades este verão: começaram ensaios clínicos de fase II, em que depois de se demonstrar que é bem tolerada o objetivo é avaliar a eficácia. Para já vai seguir doentes com Alzheimer na fase moderada durante dois anos.

Há ainda quem procure formas de prevenir a inflamação cerebral associada à doença. Ou perceber se a utilização de células estaminais poderá de alguma forma regenerar o cérebro dos doentes. Se os grupos de investigação tendem a focar-se num problema de cada vez, a ideia de que será preciso combinar terapêuticas nas diferentes vertentes para ter um resultado eficaz é cada vez mais consensual. E assim, acertar no remédio, parecendo mais perto do que nunca, pode levar mais tempo.

Diagnosticar mais cedo 

A isto junta-se um outro problema. Mesmo que os tratamentos venham a funcionar, saber se serão para todos os casos ou apenas para os doentes que ainda estão numa fase precoce da doença é outra incógnita. Mesmo que se elimine a doença, o cérebro tem uma reduzida capacidade de regeneração, assinala Peter St George-Hyslop, especialista em Alzheimer da Universidade de Cambridge que em 2012 ganhou o Grande Prémio BIAL de Medicina. As células do cérebro, que hoje sabe-se que têm alguma capacidade de regeneração, estão longe de se renovar como as da pele e outros órgãos.

Sabendo-se que os primeiros sinais de demência surgem no cérebro até 20 anos antes das queixas dos doentes, intervir o mais cedo possível é o objetivo. Para George-Hyslop, mais do que apostar numa cura em cinco anos, é mais seguro pensar que os muitos ensaios clínicos em curso revelarão “alguma coisa” nesse horizonte temporal. E num futuro não muito distante, daqui a 15 anos, será possível dar mais aos doentes.

E é este dar mais que esconde outra ideia dos cientistas sobre a forma como se poderá vencer a doença. E se curar não for erradicar, mas adiá-la tempo suficiente para deixar de ser um problema? “O Alzheimer e outras demências surgem muito tarde na vida de uma pessoa, tipicamente depois dos 65 anos. Se conseguirmos atrasá-la para lá da esperança de vida humana, teremos a doença curada”, resume o investigador. “Há até análises estatísticas que sugerem que se o tratamento conseguir adiar sintomas apenas por cinco anos permitiria reduzir os casos para metade.”

A pressão é grande: em 20 anos, com o progressivo envelhecimento da população, estima-se que o número de pessoas a viver com Alzheimer possa duplicar. Com esperança renovada mas ainda muitas peças do puzzle por juntar, a ciência diz-nos por agora que podemos fazer qualquer coisa para que a natureza jogue a nosso favor. Há fatores genéticos a contribuir para a doença, mas também há estudos a mostrar que podemos fazer mais para que a balança não desequilibre tanto. Tabaco, diabetes, colesterol elevado, sedentarismo e falta de estímulos mentais são alguns dos inimigos confirmados de um cérebro saudável. Pode parecer senso comum, mas o apelo para fazermos mais exercício, mantermos a mente ocupada e comermos de forma saudável também é a ciência a ajudar a combater a epidemia que nos anos 80, os investigadores chegaram a descrever como silenciosa e hoje é um dos desafios incontornáveis dos países que conseguiram aumentar a longevidade das suas populações. Em Portugal a esperança média de vida aproxima-se dos 85 anos e nesta idade uma em cada quatro pessoas corre o risco de sofrer de demência.


* As pessoas que cuidam 24 horas por dia um doente de Alzheimer e há muitas, possuem uma coragem inexcedível, o poder público devia honrá-las.


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