16/06/2016

CAPICUA

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A cena toda

Aprendi que o nosso calão, o nosso sotaque, a nossa linguagem quotidiana, as nossas referências locais e as nossas vivências individuais podiam ser matéria-prima para a criação artística.

Nasci no Porto em 1982 e o meu primeiro contacto com a música foi através dos discos que os meus pais ouviam. José Afonso, Fausto, Zé Mário Branco, Sérgio Godinho fizeram com que, na minha conceção de música, a palavra fosse sempre indissociável. Não só do ponto de vista estético (no seu protagonismo e inventividade), mas sobretudo enquanto veículo de mensagem, enquanto discurso e (porque não?) enquanto posicionamento. Talvez por isso, tenha encontrado no Hip Hop (anos mais tarde) um sentido de identificação, uma familiaridade.

Era adolescente no Porto em 1997 e o meu primeiro contacto com a cultura Hip Hop foi através do Graffiti. Comecei a prestar atenção aos rabiscos nas paredes e procurei saber mais sobre aquele misterioso código estético. Fui investigando, experimentando no caderno e na parede e conhecendo cada vez mais gente com o mesmo interesse. 

Foi assim que cheguei a um pequeno bar na Rua de Cedofeita, em que todas as quintas-feiras havia noite de Hip Hop. Todos os writers, mc’s, b-boys e dj’s da cidade cabiam ali. Era um lugar de partilha de informação, num tempo em que era preciso trocar cassetes, revistas, desenhos e dicas presencialmente e em que a comunidade Hip Hop do Porto começava a consolidar-se numa cena.

Foi lá que encontrei as primeiras bandas de Rap do Porto (Mind da Gap, Dealema e Matozoo), com quem aprendi que o nosso calão, o nosso sotaque, a nossa linguagem quotidiana, as nossas referências locais e as nossas vivências individuais podiam ser matéria-prima para a criação artística.

Foi uma pequena e poderosa revolução e, nessa legitimação identitária, abriu-se diante de mim a possibilidade de escrever as minhas próprias letras. Tinha encontrado a minha tribo.

Depois dessa epifania fundadora, formei a minha identidade de adolescente dentro da tribo, criei uma banda de Rap com amigos, gravei ep’s e mixtapes, ensaiei muito, organizei concertos para dar concertos e cumpri todo o percurso do underground à profissionalização.

O Hip Hop ensinou-me muita coisa e foi a ele que dediquei quase todo o meu tempo livre. Foi com ele que escolhi rotular-me nos anos da minha adolescência, sobrepondo-me às classificações que externamente se impunham. Foi com ele que criei uma relação estreita com a minha cidade e com a língua portuguesa. Foi com ele que aprendi a ética da autossuperação e que estimulei o espírito de iniciativa, numa espécie de DIY militante que me anima até hoje. E foi ele que deu sentido à minha escrita, que me impeliu a desenvolver a minha vocação e que (ultimamente) me tem permitido ganhar a vida. 

Por tudo isso, é com convicção que reitero este vinculo e que renovo os votos permanentemente, em cada disco, em cada concerto, em cada conferência, workshop ou festa da Hip Hop. Por tudo isto, mantenho a minha gratidão para com aqueles que, num primeiro momento, serviram de gatilho para a descoberta. E por isso mesmo, foi com muito orgulho que, na semana passada, partilhei o palco do teatro Rivoli com os Dealema, no âmbito do ciclo de concertos Porto Best Of (que celebra a música feita na cidade do Porto).

Digo e repito sempre que posso, perguntada ou não, que tenho nos Dealema um exemplo e uma inspiração. Não apenas por terem sido fundadores da cena portuense, mas por terem ajudado a consolidá-la ano após ano, “incentivando os putos como mandam as leis”. Na perspetiva de que o mc é também um mentor, servindo de fio de prumo para o crescer do movimento, alimentando o espírito de coletivo, mantendo uma ética de trabalho, eles têm estado sempre lá e a tribo mostra reverência. 

No palco do Rivoli tocaram na íntegra o seu primeiro álbum e lembrei- -me de mim, de discman na mão e phones nos ouvidos, ouvindo-o pela primeira vez, impressionada. Dei por mim, de novo com 20 anos, sendo fã como só um adolescente consegue, entoando os refrãos em coletivo, de braços no ar e sentindo cada rima como se nos definisse.

IN "VISÃO"
O6/06/16

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