05/04/2016

LUCY PEPPER

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O turismo 
está a estragar Lisboa

Com o boom turístico, Lisboa está a tornar-se uma paródia dela própria, uma caricatura de sardinhas, corvos, azulejos e pastéis de nata. Um dia, toda a cidade será uma extensão da Rua Augusta.

Foi no Porto, durante uma visita na Semana Santa, que me ocorreu que Lisboa está a ceder ao apodrecimento turístico. A maior parte do Porto ainda parece resistir, a sua beleza decadente recusa a plastificação em curso em Lisboa, embora haja ocorrências. Um exemplo disso é o restaurante em que jantámos no último dia da visita. Quando lá fomos pela primeira vez, há uns anos, era muito bom. Entretanto, parece ter caído na mediocridade. A comida era desesperada, pré-confeccionada, reaquecida por encomenda, e a sua clientela, para além de nós, estava resumida a turistas (espanhóis, sendo Páscoa). O apodrecimento turístico já começou.

Cá em baixo, em Lisboa, existiam antigamente uns poucos sítios dedicados exclusivamente aos turistas: os restaurantes da Baixa, com as suas ementas fotografadas, uns cafés à volta do Castelo, e umas poucas lojas de lembranças pirosas.

Desde então, o crescimento de novas empresas dirigidas ao turismo tem sido exponencial e imparável. Há lojas de lembranças a cada esquina, ameaçando afundar a cidade em imanes de azulejos e sardinhas cerâmicas. Os tuktuks e o eléctrico turístico tentam atropelar-nos a cada segundo, e há hotéis e hostels que chegariam para alojar a população inteira do Luxemburgo.

E depois há os restaurantes e café novos. Alguns deles são tipicamente portugueses, outros são invenções de cenas portuguesas (como aquela coisa do pastel de bacalhau com queijo da serra …). Há muitos restaurantes sushi, na maior parte sushi “fusão” horrendo (quem fará o favor de lhes dizer que sushi não vai com queijo em creme, nem com aquele nojo que é o molho doce de vinagre balsâmico?), italianos, mexicanos… Outros são simplesmente a expressão de alguém com uma ideia absurda e dinheiro a mais.

Os novos restaurantes vão aparecendo e desaparecendo, dependentes da sorte, do sítio, dos investidores e da moda, mas os piores entre eles já estão a marcar Lisboa. Já há mesmo sinais preocupantes de que restaurantes e cafés bem estabelecidos há muitos anos começam a tentar competir com os sítios novos e turísticos. Estão-se a remodelar e a pôr cartazes e quadros-negros decorados com giz, escritos em inglês, para aliciar os turistas. Inevitavelmente, aqueles que conseguem uma clientela turística irão começar a reestruturar as suas ementas ao gosto dos visitantes. E uma vez que o objectivo é satisfazer os desejos dos visitantes, não vão precisar de ser autênticos, uma vez que a maior parte dos turistas não percebem a diferença entre uma bela posta de bacalhau e uma má fatia de queijo.

Os restaurantes dedicados ao turismo nem precisam de apostar no regresso do cliente (o modelo de negócio do costume), porque haverá sempre novos turistas a entrar. O que importa é dar ao turista o que quer ou foi levado a querer, de modo a que o restaurante receba uma boa crítica no Trip Advisor, que é a única coisa que significa qualquer coisa hoje em dia.

Embora o turista pense que sabe o que quer e o que é bom, a verdade é que o turista não sabe o que é bom nem autêntico, nem precisa de saber ou de dar importância a isso. Logo que um restaurante opta pelo mais fácil, que é apelar ao turista, esse restaurante está perdido. Cada vez que um restaurante ou um café opta pelas ementas com fotografias, traduzidas para inglês, francês, alemão ou italiano, ou quando opta por abrir mais uma esplanada espalhada por um passeio já cheio, ou quando começa a oferecer “full English breakfast!” ou “authentic cod experience” ou “experimente esta coisa típica que inventamos esta manhã” (ouvi esta semana que já existe algures um pastel de nata com bacalhau) – cada vez que isso acontece, Lisboa perde mais um bocadinho dela própria, e arrisca-se a acabar por ser uma mera extensão da Rua Augusta.

É inteiramente compreensível que um dono de restaurante tente apanhar o euro do turista, mas a longo prazo, é uma opção desesperada que vai descaracterizar a Lisboa que amamos e que, ironicamente, é a razão que trouxe os turistas até cá.

A bela teimosia portuguesa está a ceder ao medo, e Lisboa, como estava destinado a acontecer desde que o boom turístico começou, está-se tornar uma paródia dela própria, uma caricatura de sardinhas, corvos, azulejos e pastéis de nata e/ou bacalhau, tal como previ há um par de anos. Estamos a testemunhar a terrível e rápida queda de uma cidade, e enquanto muitos de nós podemos até estar a ganhar com isso, no fim, acabaremos por perder Lisboa.

Tem cuidado, Lisboa.

IN "OBSERVADOR"
03/04/16

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