24/02/2016

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TANTO PARA JULGAR
  COMO
AJUIZAR

ATÉ ONDE PODE IR UM JUÍZ?

“Censuro-a!” Foi assim que a juíza Joana Ferrer se dirigiu a Bárbara Guimarães, alegada vítima de violência doméstica. E pode? O estatuto dos magistrados admite pena disciplinar para o juiz que “causar perturbação no exercício das funções”. O Expresso foi ouvir vários magistrados e responsáveis de associações de apoio a vítimas

Até que ponto um juiz pode mostrar o que pensa sobre o caso que está a julgar? A juíza Joana Ferrer cometeu alguma falta disciplinar quando tratou a apresentadora Barbara Guimarães por “Bárbara” e o ex-marido dela, que está a ser julgado por violência doméstica, por “professor”? Ou quando disse à queixosa que a censurava pelo facto de ter apresentado queixa tão tarde e até ter mostrado que dá pouca credibilidade às queixas: “Parece que o Professor Carrilho foi um homem, até ao nascimento da Carlota [a segunda filha do casal], e depois passou a ser um monstro. O ser humano não muda assim”, disse a juíza. O senso comum diz que, no mínimo, a juíza pisou o risco. 
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O estatuto dos magistrados não prevê em concreto qual é a forma como os juízes devem tratar os vários intervenientes nos processos, mas admite uma pena disciplinar para o juiz que “causar perturbação no exercício das funções”. 

As declarações da magistrada Joana Ferrer podem, por isso, levar a um processo disciplinar. Por enquanto, o Conselho Superior da Magistratura não vai averiguar as palavras da juíza: “Não foi feita qualquer participação pelos advogados do processo e o conselho ainda não decidiu nada sobre o assunto”, explica uma fonte oficial. O coletivo feminista Maria Capaz escreveu uma carta aberta a criticar as declarações da juíza. O documento será entregue, em mão, no conselho, o que poderá levar à abertura de um inquérito disciplinar.

A juíza tratou sempre Manuel Maria Carrilho pelo título académico
Sem querer falar deste caso em concreto, Fernanda Palma, professora e ex-juíza do Tribunal Constitucional, admite que “os juízes não são robôs, exprimem a sua mundividência, e isso é a natureza das coisas”. Contudo, “têm de ter contenção, porque quem acusa ou quem julga está sempre sob suspeita”, e “o juiz está ali para julgar - e não para emitir opiniões”.

Maria José Costeira, presidente do sindicato dos juízes, não quer pronunciar-se e, por enquanto, a única reação é da associação das mulheres juristas, que mostrou “preocupação” pela “persistência de pré-juízos desconformes com o legalmente estipulado”. Esta associação é presidida por uma juíza desembargadora, Teresa Féria.

Bárbara Guimarães não reagiu às declarações da juíza
O advogado Pedro Reis, representante de Barbara Guimarães, também não quer falar: “O que tiver a dizer, digo-o no processo”. E Paulo Sá e Cunha, advogado de Manuel Maria Carrilho, diz que não fala “sobre casos em julgamento” e lamenta “que isso não seja observado por todos os juízes”. Qualquer um destes advogados pode pedir o afastamento da juíza, o que levaria ao recomeço do julgamento. 

Falta formação
Da próxima vez que uma mulher pensar em fazer queixa hesitará em fazê-lo, ao pensar nas palavras da juíza Joana Ferrer? É difícil ter uma resposta conclusiva. As associações que trabalham com vítimas de violência doméstica temem as repercussões, mas apontam o foco para a formação. Juízes, procuradores e técnicos deviam ter formação específica. 

“A forma como as vítimas devem ser tratadas está mais do que consignada. Devem-se evitar os juízos de valor, para evitar fenómenos de revitimização secundária, deve-se mostrar compreensão e estabelecer laços de proximidade”, diz Daniel Cotrim, da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). O procedimento descrito não é, no entanto, o que acontece sempre, mas o “vai acontecendo”. Faz falta formação uniformizada e por todo o país. “Não se sabe quantos juízes fazem formação, quem são esses juízes, que formação fizeram, qual o número de horas”, acusa Margarida Medina Martins, presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV). 
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Cada caso é um caso, cada juiz um juiz. Independentemente do género. “Não acredito que as mulheres em situações de poder sejam mais duras com outras mulheres. Não penso que seja uma questão de género”, defende Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da Justiça. Uma destacada magistrada do Ministério Público, que não quis ser identificada, considera que, por vezes, quem julga obedece aos seus padrões culturais. “Não tem a ver com o género, há sim uma questão cultural. Por exemplo, nos casos de condução sob efeito do álcool, é socialmente mais aceite que os homens sejam mais infratores do que as mulheres. Isso vem da sociedade.”

O facto de Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho serem figuras públicas poderia servir de pretexto para o caso ser julgado de forma exemplar. A AMCV vê este exemplo como um mau sinal e de que ainda há um longo caminho a percorrer no tratamento dos casos de violência doméstica. “O maior trabalho de como se deve proceder nestes casos tem sido concentrado em Lisboa, por isso é preocupante que se atue assim”, diz Margarida Medina Martins, presidente da mesma associação.


TEXTO Carolina Reis e Rui Gustavo

IN "EXPRESSO"
16/02/16

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