01/12/2015

PATRÍCIA FONSECA

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Porque é que ainda se escrevem 
notícias sobre cegos, negros 
ou ciganos no governo?

A redução das pessoas à sua diferença pode querer ser destacada pela positiva, como sinal de que já não existe tanta discriminação, mas o que acabam por revelar, na maioria das vezes, é precisamente o contrário

Eu tenho um sonho.
Sonho com o dia em que esta nação se erguerá e respeitará o verdadeiro significado dos seus princípios, em que todos os homens nascem iguais - e serão tratados de forma igual.

Sonho que os nossos filhos, um dia, viverão num país onde não serão julgados pela cor da sua pele, pelo seu género ou orientação sexual, pela etnia do pai ou da mãe, pelas suas deficiências ou diferenças, mas sim pelo seu caráter e pelas suas capacidades.

Sonho com o momento histórico em que não seja preciso lembrar um discurso com mais de 50 anos durante a tomada de posse de um governo do meu país - porque, apesar de proferido numa nação hoje comandada por um negro, o sonho de igualdade de Luther King ainda não se cumpriu verdadeiramente. Lá como cá.
O Executivo que ontem tomou posse tem uma ministra da Justiça negra, uma secretária de Estado cega, um secretário de Estado de ascendência cigana. Apetece perguntar: e depois? Porque é que este tipo de categorização ainda ocupa títulos de jornais?
"Costa chama cega e cigano para o governo"
"O secretário de Estado cigano de pai"
"A primeira mulher negra a chegar a ministra"

A redução das pessoas à sua diferença, enquanto deficientes ou de outras cores, géneros ou origens, pode querer ser destacada pela positiva, como sinal de que os tempos avançam e já não existe tanta discriminação na sociedade portuguesa, mas o que acabam por revelar, quase sempre, é precisamente o contrário. E às vezes a emenda é pior que o soneto. Como quando se escreveu
"uma economista, um sociólogo e uma cega ao lado de Vieira da Silva"
para mais tarde corrigir para
"uma economista, um sociólogo e uma jurista cega ao lado de Vieira da Silva"
Estaria tudo certo sem o "cega". Ou então, se escrevesse, por exemplo
"uma economista obesa, um sociólogo gago, uma jurista cega ao lado do estrábico Vieira da Silva"

Mas isso pareceria mal, certo?
Noutra manchete, destaca-se que o ministério da Justiça, o tal que será liderado por uma negra, "faz o pleno no feminino". Só mulheres naqueles gabinetes, ui. E quantos ministérios fazem o pleno só com homens na sua equipa?

O currículo e o percurso destes novos governantes, todos excelentes e nalguns casos profundamente inspiradores, acabam relegados para um segundo plano das notícias.

Temos um novo primeiro-ministro que é de origem goesa e que, há alguns anos, contou ao Público que nunca se sentiu vítima de racismo, tirando "uma ou outra vez" em que lhe chamaram "monhé". A verdade é que a cor da sua pele já não faz manchetes, como já não se destaca o facto de a nova ministra da Administração Interna ser uma mulher (Constança Urbano de Sousa).

Talvez tenhamos mesmo de ter paciência e entender que há ainda um longo caminho a percorrer até que a diferença deixe de ser uma surpresa. E talvez estas nomeações sejam mais um passo nesse caminho.

Um dia, o facto de uma ministra ser negra ou um secretário de Estado ter um pai cigano deixarão de fazer manchetes e não merecerão mais do que uma nota de rodapé. Eu, pelo menos, preciso de sonhar com isso.
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