12/12/2015

JOSÉ ANTUNES DE SOUSA

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Uns certos rapazes

As palavras que usamos no nosso dia-a-dia têm, todas elas, a sua história, mais ou menos longa: todas têm a sua linhagem – mais nobres umas do que outras, como acontece com as pessoas. Algumas têm desencontrados motivos – ora de orgulho, ora de alguma vergonha. As palavras são como a roupa, que vai evoluindo conforme o gosto de quem com ela se veste e dentro dela se vai reconhecendo.

Ora, quem é ou foi meu aluno (confesso que não gosto nada de dizer estas coisas, porque, afinal, ninguém ensina ninguém – apenas aprendemos) sabe do apreço que tenho por uma velha senhora, aliás, a paixão dos filólogos – pela etimologia. E quem, numa bíblica prova de paciência e de generosidade, me vai lendo, sabe que dela me socorro amiúde, sempre no engodo heurístico de surpreender imprevistos matizes no conceito que me proponho explorar. E a verdade é que, não raro, ela nos reserva surpresas.

Na tropa, nas minhas conversas e exortações na parada aos meus militares, tinha o hábito de a eles me dirigir sempre da mesma maneira: “Meus rapazes!”, expressão que, para mim, envolve um sentimento de afecto, de cumplicidade e camaradagem e o reconhecimento de um particular vigor físico e mental. Era assim também que me dirigia aos atletas das diferentes modalidades do Benfica. Decididamente, gosto muito deste vocábulo e, pronto.

Só que esta é uma das tais palavras com problemas de ascendência: ela transporta o vírus de uma perturbadora duplicidade semântica. De facto, o étimo latino rapax, rapacis (de passo, convém notar que todas as palavras derivadas de termos latinos o são a partir do genitivo, neste caso, do adjectvo original), ao mesmo tempo que significa ávido e impetuoso (como o são obviamente os nossos rapazes em função da sua vitalidade juvenil), eis que significa também ladrão – isso mesmo: alguém que rapa tudo e não deixa nada, como na canção de denúncia de Zeca Afonso e José Mário Branco e tão glosada nos teatros de operações na guerra colonial, sobretudo no Niassa, em Moçambique: “Eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”.

Convenhamos, em todo o caso, que ressoa deste radical latino uma explícita, quase obscena conotação de usura e alarvidade: é tal a avidez, o apetite sem freio, que rapo tudo – daí a expressão, bem ilustrativa, de rapa-tachos. Alguém, lambuzado até ao pescoço, de olhos esbugalhados de animalesco fascínio – e eis a imagem de uma avidez devoradora, numa espécie de incontinência deglutitiva: nada escapa a esta rapacidade, que, como se vê qualifica muito mais a compulsividade e desenvoltura na arte de roubar do que a vitalidade expansiva da juventude – ambos, porém e ironicamente, são rapazes: os abutres que roubam o repasto às aves de menor porte e os jovens, que, na sua transbordante vitalidade, são capazes de rapar o prato ou até o tacho, é certo, mas são igualmente capazes de se empenharem entusiasticamente na ajuda ao mais desvalido – e, viva a rapaziada!

A placidez de um pasmo imemorial da savana é, a cada passo, perturbada pelas investidas das aves de rapina, outro modo de dizer aves rapa(c)zes , ou seja aves que roubam.

É assim na savana e na selva – nesta selva, sim, nesta selva em que este nosso mundo se converteu.

Por detrás de cada porta, no átrio inefável dos gabinetes suficientemente altos para não serem infectados do pestilento rasteirismo da plebe, espreita sempre uma qualquer imprevista e exótica ave que, de garras afiadas e em voo picado, se lança sobre a presa indefesa e impotente.

São assim uns certos rapazes que nos espreitam por todo o lado e nos asfixiam – eles são invisíveis, subliminares, às vezes, mas tragicamente presentes.

Não há apenas os nossos amados jovens, os nossos rapazes que nos ensurdecem com o seu barulho estridente, que atroam os ares com a música pimba do seu automóvel de janelas abertas – tudo isso, é verdade, mas são do clube do substantivo, têm a dignidade do nome e da expressão de uma vida que se lhes dá em excesso... só que, lamentavelmente, há os outros, tétricos e teratológicos, sempre prontos a sugar-nos, a esmifrar-nos, a chupar-nos o sangue – eles são do clube obscuro do adjectivo!
Eis o paradoxo semântico: temos, por um lado, os nossos rapazes, ávidos de vida e impetuosos de generosidade, como os futebolistas da equipa do nosso clube predilecto, mas temos os outros – igualmente rapazes, embora despromovidos à segunda liga dos adjectivos, mas incomensuravelmente outros, que nos rapam, a nós e a eles, certamente a maior parte, sem dó nem piedade.

Estes rapazes de segunda moram encima das nossas cabeças e fazem ninho na nossa própria cama: fazem-se íntimos e, ao contrário dos nossos rapazes que são barulhentos, ostensivos e joviais, aproximam-se silenciosos, quase como que querendo insinuar-se como nossos, para assim nos raparem doce e impunemente – até que gota de sangue não sobre já para lhes saciar a sede. Tudo como se alguma vez a rapacidade pudesse vestir-se das roupagens divinas da subtileza!

Destes outros rapazes, destes profissionais do sangue e da rapina, há-os por todo o lado, a cada esquina do mundo, mas, na sua táctica da ubiquidade, quase se dissipam como ectoplasmas, fantasmas sem rosto. Apenas um seu efeito sensível: todos os sentimos mexendo em nosso bolso, rapando o nosso tacho, que o sentimos e vemos bem vazio e limpo – sim, eles limpam tudo! Mesmo que o seu ar lambuzado lhes denuncie a cleptómana propensão para a incontida alarvidade.

Enfim, eles andam por aí – nos governos, nos Bancos, nas empresas...no inefável mundo do futebol!

Alguns, que se julgavam a salvo da linha de tiro da censura social, parece terem sido traídos pela sua gula, pela sua rapacidade incontrolada.

Mas, muito cuidado com esses rapazes – ele anda por aí cada um!...
Por mim, declaro aberta a época de caça a certas aves de rapina – que não correm risco de extinção! Infelizmente.


Doutorado em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa e Professor Visitante na Universidade de Brasília

IN "BOLA"
10/12/2015

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