08/10/2015

LUCY PEPPER

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Praxes em Lisboa

Em Lisboa, os estudantes dedicam-se às praxes como se a universidade fosse o exército e os alunos precisassem da coesão de uma unidade de combate.

O ano lectivo universitário já começou… e com o novo ano lectivo, veio a praxe, a grande “tradição” supostamente instituída para integrar o novo estudante na universidade e o ajudar a sentir em casa.

Embora a primeira onda de humilhação nas ruas de Lisboa tenha diminuído nestes últimos dias, a praxe, como o futebol, tem arranjado maneira de se espalhar através do ano inteiro. Espero poder dormir um par de noites descansadas antes que tudo comece de novo, a partir do nada, por capricho de uns “doutores” carentes do 2º ano (e uns ainda mais carentes do 3º e 4º, para além daqueles tipos esquisitos que continuam a andar por lá anos depois), os quais provavelmente só precisam de encontrar um amigo. O que já aguentei e ainda vou aguentar são gangues de “caloiros” na rua, aos 30 e 40 de cada vez, por baixo da janela do meu quarto, a cantarem como se estivessem a sofrer um ataque de histeria em massa. O líder, vestido com uma farda à Hogwart’s, fica em cima de uma caixa, a abanar uma grande colher de pau. Tem o ar de quem gosta de ser adorado pelas massas, à Mussolini.

No meu tempo, na Grã-Bretanha, chegávamos à universidade como coelhos frescos para abater. Éramos todos forasteiros, porque a tradição britânica era ninguém estudar na sua própria cidade. Lá nos tentávamos safar. Colocadas as caixas de tralhas e o edredão no nosso novo quarto, fosse lá onde fosse, chorávamos um bocado e depois começávamos o processo lento de perceber como as coisas funcionavam. Em muitas universidades, a primeira semana chamava-se “Semana dos Caloiros”, e havia eventos e festas para os caloiros se conhecerem uns aos outros e aos estudantes carentes do 2º ano que organizavam os eventos da semana.

Tive a sorte de não ter de assistir a nenhuma Semana de Caloiros. Estudei numa faculdade de belas-artes, e os estudantes de artes eram demasiado “cool” (“cool” como o Fonz, ou seja, nada “cool”) para serem vistos a organizar ou a assistir a tais festas e eventos. Estávamos concentrados em exercitar o nosso ennui e em procurar absinto.

Semana de Caloiros ou não, acabávamos por conhecer os colegas de casa, embebedávamo-nos, tentávamos não engravidar ou apanhar sífilis ou morrer, e íamos às aulas, até que um dia nos sentíamos em casa.

Aqui, parece que os costumes são outros. Em vez de se habituarem lentamente à sua nova situação, os “caloiros” são arrebanhados pela cidade toda, obrigados a atividades estúpidas e sofrendo rituais humilhantes, bullied por “doutores” carentes do 2º ano. Como se a universidade fosse o exército, e os estudantes precisassem da coesão de uma unidade de combate. É verdade: alinhar com a praxe não é obrigatório. Mas para quem vem de longe, intimidado pela estranheza de tudo, sob a pressão dos colegas, haverá real liberdade de escolha?

O mais engraçado é que, em Lisboa, nada disto corresponde sequer a uma tradição genuína. Um dia, uns estudantes carentes do 2º ano olharam para Coimbra e pensaram “olha, vamos fazer uma coisa igual!” É estúpido. E ainda parece mais estúpido quando temos em conta que tem havido mortes relacionadas com a praxe, mortes que nunca vão ser realmente resolvidas por causa do código de silêncio da tribo. Tudo por causa dos egos de uns doutores carentes do 2º ano (e do 3º e do 4º) que querem abanar as suas colheres e passear na cidade com as suas capas tolas.

IN "OBSERVADOR"
04/10/15

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