30/09/2015

CATARINA CARVALHO

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Porque é preciso 
falar das praxes

Debaixo da calçada, a praia. Tenho pensado muito em frases como esta, desse Maio de 68 que não vivi. Sou da geração da nostalgia em relação a essa, anterior, que fez a revolução dos costumes que marcou o nosso século – este que fica aqui a cavalo entre o xx e o xxi. Gostava de ter lutado por alguma coisa que mais tarde viesse a acontecer. De ter usado uma minissaia quando isso era uma afirmação de valores. De ter gritado contra o sistema antes de o sistema ter engolido – com o seu poder suave e integrador – toda a subversão. Tenho saudades por interpostas pessoas – ou geração – desse tempo. Em que uma mulher grávida e nua aparecer numa revista não era marketing, mas real liberdade e subversão.

O mundo é hoje melhor do que esse, cheio de proibições que essa geração combateu? Talvez seja. Mas isto às tantas parece a história dos macacos e dos homens de Neandertal, do lado fértil e do outro, do rio. A necessidade aguça não só o engenho, como a inteligência, e pode até alavancá-los a ambos – isto para usar a mais moderna linguagem da gestão, essa que se considera a filosofia, a ciência e a religião dos nossos tempos. Só pode ser esta a explicação para o nosso adormecimento em relação às praxes.

Ah, está tudo mais calmo, dizem-me quando, na Avenida da Liberdade, passa um conjunto de jovens aos urros, de T-shirts azuis farruscadas, ladeado por uma coluna de também jovens, todos vestidos de negro da cabeça aos pés. Agora já é diferente, contam-me os que conhecem melhor o ambiente, quando lhes digo que todos – mas mesmo todos – os dias me cruzo pela cidade com estes corvos negros vestidos daquilo a que se convencionou chamar trajes académicos. Presumo que com esta adjetivação de «melhor» queiram fazer a comparação com outras praxes que tiveram o pior resultado possível: a morte.

Qualquer acidente bárbaro como os do Meco e de Braga será, sempre, a ponta de um iceberg. Mas não de gelo, da podridão e maus costumes que as praxes somatizam. E não há tolerância possível. Nem para os trajes negros. Têm tudo o que é mau numa farda sem o que habitualmente é positivo: espírito de corpo, solidariedade, missão. Juro que não entendo: porque é que numa fase da vida em que deviam querer ser diferentes, eles querem ser todos iguais? Porque é que na única época das suas vidas em que a diversidade não tem consequências eles querem ser fotocópias dos demais? Porque se vestem de gravata antes de precisarem? Porque usam capas tristes e pesadonas? Para se dizerem diferentes do resto da população? Isso seria sintoma triste de elitismo, ainda por cima desajustado da realidade – a verdade é que um diploma, hoje, não é garantia de nada. Como imagem de poder? Sobre quem?

Também não há tolerância possível para os que se deixam impor o cabresto desta obrigação, que fazem as figuras mais tristes porque tem de ser, é «tradição», sem sequer se questionarem. Os que urram e gritam como em cânticos mais apropriados a fascismos, ou, na melhor das hipóteses, jogos de futebol, com o mesmo nível de inteligência coletiva das claques. Será esta a matéria do nosso futuro? Medo. Estaremos a escolher entre os que impõem os seus tacões de ferro sobre os que rastejam e os que rastejam. Porque a verdade é que as praxes e tudo o que durante este período acontece diz mais sobre o futuro que espera Portugal do que as promessas desta campanha eleitoral.

IN "NOTICIAS MAGAZINE"
27/09/15

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