03/07/2015

PEDRO BACELAR DE VASCOCELOS

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Devedores e usurários

Enquanto prossegue a miserável farsa interpretada pelos figurantes de Bruxelas, os gregos não desistem de procurar outra saída para a tragédia em que se deixaram enredar.

Os cinco anos de penúria crescente e ruína generalizada infligida à Grécia para benefício exclusivo dos seus credores demonstraram o fracasso definitivo dessas políticas que quaisquer negociadores de boa fé se apressariam a reconhecer e emendar. Porém, ao cabo de cinco penosos meses de conversações, quando em cima da mesa se confrontavam propostas que todos já reconheciam como adequadas para se chegar a um entendimento, o FMI "deu o dito por não dito" e o representante da Grécia seria "expulso" da reunião do "Eurogrupo" quando - imagine-se! - anunciou a intenção de submeter a referendo o compromisso que os credores lhe exigiam - "é pegar ou largar!" - porque colidia com o mandato democrático que os eleitores gregos tinham confiado ao seu Governo e por isso punha em causa a sua legitimidade. Dois mil e quinhentos anos depois de a ter inventado, a Grécia continua a dar lições de democracia aos "bárbaros" europeus.

Nesta Europa desorientada e submissa aos interesses da finança e da usura, operou-se uma perigosa inversão de valores que subordina a paz e a solidariedade entre os povos aos egoísmos nacionais e à concorrência desenfreada. Que submete os tratados fundadores e os direitos humanos garantidos por uma "carta" juridicamente vinculante às disposições estritas do "pacto orçamental". Uma Europa que despreza a esperança e a dignidade de refugiados e cidadãos europeus que procuram alguma segurança no interior das suas fronteiras e que fazem os maiores sacrifícios para pagar dívidas e construir um futuro melhor. Num esforço de simplificação brutal de que os nossos governantes são o mais feroz exemplo, tudo se resume a que "ninguém pode ser dispensado do cumprimento das suas obrigações"... e que não há outras obrigações para além da satisfação pontual dos interesses dos credores! O "serviço da dívida" toma assim o lugar antes reservado ao "bem comum" e a usura já não é crime nem pecado.

Como dizia um dos três galardoados com o Prémio Nobel da Economia, Amartya Sen, Joseph Stiglitz e Paul Krugman - os três denunciam impiedosamente os governos europeus por não terem ainda chegado a um acordo com a Grécia! -, ninguém pode ser reduzido à escravidão para pagar o que deve aos seus credores. A dívida - ao contrário do roubo, da fraude ou da burla - não é um crime. As consequências reais de não pagar o que se deve podem tornar-se tão extremas e destrutivas como a prisão ou a condenação à morte; quando o devedor fica sem meios de sobrevivência, perde a sua própria casa por não ter como pagar a prestação ao banco que lhe deu ordem de despejo ou, achando-se completamente arruinado, em desespero, se suicida. Mas nenhuma lei prevê que alguém possa ser punido - com uma pena de privação da liberdade ou da própria vida - só porque não tem meios para pagar o que deve. A dívida não é um crime porque, embora mereça forte censura social, não põe em causa os valores fundamentais da vida em sociedade, é um facto a que não se reconhece uma dimensão ética e por isso não é passível de se tornar objeto de uma sanção jurídico-criminal. Por outro lado, a dívida pressupõe a aceitação de um risco e as respetivas consequências para o devedor e para o credor - os responsáveis pela avaliação que fizeram do que poderiam vir a ganhar ou perder.

Digno de censura ética, religiosa e criminal é apenas o comportamento do credor usurário que se tenha aproveitado das fragilidades do devedor para lhe impor obrigações inaceitáveis. É assim, no plano moral das relações entre indivíduos. Por maioria de razão, um povo ou um Estado não podem ser objeto de um juízo moral que transforme os erros ou os crimes dos governantes em culpa coletiva. Não fora assim, e os povos europeus - com os seus velhos impérios coloniais e o "holocausto" alemão - estariam condenados à expiação eterna de tais crimes.

Chega de manipulação e demagogia! À mesa das negociações em Bruxelas, o que se discute não é o pagamento da dívida, mas apenas as condições em que há de ser paga.


PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
02/06/15

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