02/04/2015

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HOJE NO
 "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"

Manoel de Oliveira
O elogio da literatura

Do histórico "Ato da Primavera" (1963) a "O Gebo e a Sombra" é intensa e profunda a relação do cinema de Oliveira com a escrita.

Entre os muitos lugares-comuns que sempre acompanharam o trabalho de Manoel de Oliveira, a sua "dependência" da literatura é, por certo, um dos mais persistentes. Assim, o autor de Amor de Perdição (1978) apoiar-se-ia numa mera transcrição de parágrafos e diálogos literários, desse modo ignorando as questões mais básicas da mise en scène cinematográfica...
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Ora, escusado será sublinhar que a relação com a palavra literária é vital no universo criativo de Oliveira. Seja como for, o que importa contrariar é essa visão tosca segundo a qual a especificidade cinematográfica se mede por uma "maior" ou "menor" presença de palavras. Aliás, ironicamente, essas palavras começam por interessar Oliveira, não pela procura de qualquer caução literária, antes porque a sua materialidade arrasta um decisivo efeito... teatral.

Nesta perspectiva, Ato da Primavera (1963) emerge como um objecto nuclear na sua filmografia. Registando uma representação popular da Paixão de Cristo, na aldeia da Curalha (Trás-os-Montes), o seu olhar celebra a possibilidade de o cinema integrar a evidência física do teatro como matéria paradoxal do seu artifício - a partir daí, ganharia força a ideia, mais mítica que teórica, segundo a qual o cinema é "apenas" o registo audiovisual do teatro. Aliás, a importância simbólica de Ato da Primavera transcende o universo autoral de Oliveira, já que coloca, de modo exemplar, raro no cinema português, a questão da volatilidade das fronteiras entre "documentário" e "ficção".

Seria através de O Passado e o Presente (1972) que Oliveira consolidaria essa fundamental via "teatral" do seu cinema. Adaptando uma peça de Vicente Sanches, o filme, além de envolver uma relação de fruição com o texto escrito, encena um quadro dramático a que a futura obra de Oliveira emprestaria as mais diversas ressonâncias simbólicas. O filme iniciou uma galeria de retratos de "amores frustrados", ao mesmo tempo sinalizando a relação de Oliveira com alguns autores emblemáticos: Benilde ou a Virgem Mãe (1975) encena a violenta dimensão fúnebre do erotismo, exponenciando o texto da peça de José Régio; Amor de Perdição propõe um exercício de extremada ousadia na relação com a escrita de Camilo Castelo Branco; enfim, Francisca (1981), adaptando o romance Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, possui a dimensão de uma tragédia romântica rasgada por uma ironia que pode ter tanto de subtil como de sarcástico.

O regresso de Oliveira à escrita de Agustina (Vale Abraão, Party, etc.), ao teatro de Régio (O Meu Caso), ou ainda o seu encontro com a prosa de Eça de Queiroz (Singularidades de uma Rapariga Loura), decorrem de uma visão do mundo em que as palavras que os humanos trocam entre si constituem fundamental matéria de desconhecimento e delírio, objetividade e onirismo. O caso de O Gebo e a Sombra (2012), adaptado de uma peça de Raul Brandão, possui um valor sintomático: por um lado, é um filme cujo elenco integra vários nomes estrangeiros, por outro lado, a sua perturbação interior não poderia ser mais portuguesa.

* Não gostámos de todos os filmes que realizou mas não gostamos absolutamente nada que tenha partido.


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