04/04/2015

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HOJE NO 
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Presidente do IRN 
sobre comissõesnos vistos gold: 
“Agora há que arrebanhar por todo o lado”

Escutas mostram que António Figueiredo sugeriu a empresário chinês que director do SEF deveria receber “um bocadinho daqueles cinco mil” para ficar “contente”

De Novembro de 2013 a Novembro de 2014, os investigadores ouviram as conversas telefónicas de António Figueiredo, então presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), de Manuel Jarmela Palos, então director do SEF, e de empresários chineses que viriam a ser detidos por suspeita de terem alegadamente montado uma rede de corrupção em torno dos vistos gold. Além de estarem sob escuta, todos eles foram vigiados dias e dias, a ponto de o Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária (PJ) saberem em que carros seguiam viagem, quem jantava ou almoçava com quem e até, com grande pormenor, o que era dito à mesa. Tudo isto está descrito em detalhe num acórdão da Relação de Lisboa de resposta ao recurso de um dos arguidos, e a que o i teve acesso. O acórdão contém excertos das escutas telefónicas realizadas pela PJ aos arguidos. 
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FIGUEIREDO -"HONRADO I"
No topo da rede alegadamente estava António Figueiredo, que não só teria como missão facilitar o processo burocrático de obtenção dos vistos através dos meios do IRN como exerceria influência junto de decisores públicos. O suficiente para o MP o descrever como uma “espécie de demiurgo entre o universo empresarial de Zhu [empresários chineses] e parceiros e a realidade da administração pública”. Tudo isto em troca de quê? De alegadas comissões como contrapartida pela facilitação dos negócios. O MP não tem dúvidas de que era a isso que se referia quando, em conversa telefónica com Zhu, comentou: “Agora há que arrebanhar por todo o lado.” 
Há ainda uma outra escuta telefónica em que Figueiredo refere a Zhu Xaiaodong (um dos cidadãos chineses constituídos arguidos no processo) que vai dar parte dos 5 mil euros de uma comissão ao Manuel Palos para que o director do SEF ficasse satisfeito. “Daqueles... depois daqueles cinco mil? Eu dou-lhe um bocadinho, qualquer coisa para ele ficar contente, tá a ver?” Zhu consentiu: “Sim, sim. Aquele, esse, já se acabou. Nós pagamos, tá bem?” 
E outras duas conversas que, cruzadas, mostram que no dia em que Zhu se refere a uma comissão de 5 mil euros por causa da compra de uma casa, via Remax, Figueiredo conta à mulher já ter arrecadado mais 5 mil euros com a venda de uma casota. 
A tese, trazida para o interrogatório por Palos e Figueiredo, de que estariam a falar de “comissões de vendas de vinhos” não convenceu os investigadores. “Sessões estas que, fora de um contexto delirante, dificilmente se podem associar a ‘comissões de vendas de vinhos’, como é pretensão das defesas [...] forçando, para lá do razoável e da polissemia verbal o sentido das palavras usadas pelos interceptados.”
Para continuar a levar o seu plano avante, sustenta a investigação, Figueiredo gabar-se-ia constantemente das suas capacidades para mover influências. Numa conversa com Zhu observou que a rapidez e agilidade com que conseguia que os vistos fossem aprovados eram “coisas” que não caíam “do céu”. Noutra aprontou-se a falar com Manuel Palos, director do SEF, para fazer “um bocadinho de pressão”, de modo a desbloquear a retenção de uma cidadã chinesa em Amesterdão.
As capacidades de “fazer acontecer” de Figueiredo chegaram a ser comentadas por Zhu perante terceiros. Em conversa com um concidadão chinês, Zhu contou como conseguiu obter, em apenas dois dias, os “cartões” do SEF. “Só eles conseguem isso”, disse, realçando a importância de Figueiredo “abrir a boca” e fazendo menção a uma “senhora velha” no atendimento do SEF, que teria ficado espantada por mal ter recebido os impressos já estar a receber os documentos finais no dia seguinte. Houve ainda quem comentasse que os pedidos que vinham de Isabel, que fazia o secretariado de Manuel Palos, eram “hiper-rápidos”. 
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PALOS - "HONRADO II"
Em alegada retribuição pelas suas ajudas, Palos terá recebido de Zhu duas garrafas de vinho, por altura do Natal, no valor total de 280 euros. Durante o interrogatório, alegou-se que eram garrafas de produção caseira de António Figueiredo, mas uns recibos de compras na Makro desmentiram essa versão. O ex--director do SEF não devolveu as garrafas, ao que o obrigaria o seu código de ética, mas alegou que tinha obrigado a devolver os envelopes com cem euros entregues por Zhu a cada uma das suas secretárias. Esta versão, porém, não foi comprovada por Zhu, que contou no interrogatório que os envelopes nunca lhe teriam chegado às mãos.  
De forma a envolver Manuel Palos “de forma mais intensa”, e com o objectivo de angariar novos contactos para a alegada actividade privada desenvolvida em parceria com Zhu, António Figueiredo terá encetado diligências, em Fevereiro de 2014, junto da chefe de gabinete da ministra da Justiça e de Palos. O objectivo era que dirigentes do IRN e do SEFpudessem estar presentes na Feira de Imobiliário em Xangai, que iria acontecer em Maio de 2014, com viagem custeada pela Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária em Portugal (APEMIP), presidida por Luís Carvalho de Lima. 
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LIMA - "HONRADO III"
Apesar dos esforços, Figueiredo não conseguiu convencer o gabinete da ministra da Justiça da utilidade pública da participação do IRN naquele evento. Em conversa telefónica, o presidente da APEMIP alegou junto de Figueiredo que a decisão deveria ter sido tomada assim devido a uma entrevista da ministra a propósito das comissões ganhas com os vistos gold. Figueiredo sublinhou que quem ganhava essas comissões elevadas eram as empresas chinesas que faziam a “ligação directa”. E Luís respondeu: “Então eu não sei? Você sabe que eu sei [...] mas sabe, não adianta falar muito no assunto, ó Figueiredo, que nós assim espantamos a caça.” 
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Fuga de informação As conversas ao telefone começam a mudar de tom por volta de Março de 2014, altura em que a investigação suspeita que houve uma fuga de informação que deu, pelo menos a alguns dos 11 arguidos, conhecimento de que estavam sob escuta. Mas o maior revés nos planos da alegada rede em torno da concessão dos vistos gold surgiu quando, em Junho de 2014, a “Sábado” noticiou que o esquema estava sob investigação. Nesse dia, Palos ligou para Luís Gouveia, director nacional adjunto do SEF, e comentaram as notícias. Luís diz achar que “isto está podre é na parte dos espiões”. Palos contrapõe e diz: “Ou então isto é uma forma de matar o processo, está a ver? Porque há aí muita gente contra isto. [...] Nós já estávamos à espera disto, está a ver? Porque já para aí há três semanas que o secretário de Estado [a investigação pressupõe que estavam a falar do secretário de Estado da Administração Interna, João Almeida] me tinha alertado para isso, que iria sair uma notícia, tal, tal, tal. Porque isto anda para aí a ser cozinhado há algum tempo, Luís, não é de agora.” Manuel Palos ainda acrescenta: “Isto agora deixa toda a gente... isto é uma mancha sobre os serviços secretos, pá.” 
A notícia também levou a que um “Zé”, dono de hotéis no Algarve, ligasse a Palos para lhe falar sobre “a história da corrupção”. O então director do SEF tentou chutar para canto: “Isso nem sei o que é! Só li as gordas, só li as gordas. [...] Aquilo é uma coisa muito genérica.” Zé respondeu: “Mas o do IRN, tu já uma vez me tinhas dito que já tinhas alertado o gajo.” Palos continuou a disfarçar: “Não é bem alertar, quer dizer...” Zé insistiu: “Cuidado, cuidado, que ele acho que era sempre a abrir, não era? Que tu uma vez me falaste nisso, não foi?” Palos, que já saberia que estava sob escuta, mais uma vez não se alongou. 

* Era pressuposto que no topo da Administração Pública estivessem pessoas honradas, a verdade é outra.

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