15/03/2015

LEONÍDIO PAULO FERREIRA

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O primeiro-ministro 
tem medo

A esquerda do PSF desconfia dele, a esquerda à esquerda dos socialistas abomina-o, a direita chama-o cínico e a extrema-direita vê nele um inimigo. Apesar de tanta hostilidade, Manuel Valls está prestes a completar um ano como primeiro-ministro francês e, a par da tentativa de recuperar a economia, combate como ninguém para evitar a derrota anunciada dos socialistas nas eleições departamentais marcadas para dia 22, com segunda volta no domingo seguinte. Determinação que o leva agora a diabolizar a Frente Nacional (FN), ao ponto de ter dado uma entrevista à rádio Europe 1 onde admite temer a extrema-direita, favorita nas sondagens. "Tenho medo pelo meu país. Tenho medo que fracasse contra a FN", afirmou Valls, provocando uma chuva de críticas.

Que Valls arremeta contra a FN não deve admirar. Entre ele e Marine le Pen há um ódio deestimação. O político socialista não se deixa convencer pelo esforço de moderação de Marine, que cuida de ter uma imagem pública menos polémica do que a de Jean-Marie le Pen, o pai e líder histórico da FN, tão conhecido pelas diatribes antissemitas como por ter uma vez, graças às divisões na esquerda, chegado à segunda volta das presidenciais. E nos círculos da extrema-direita não falta quem deteste o homem que o presidente François Hollande promoveu a primeiro-ministro para estancar o descrédito socialista. Assim, em abril de 2014, semanas depois da passagem de Valls da pasta do Interior para a chefia do governo, saiu um livro que tinha como objetivo óbvio denegri-lo. "Disposto a todos os compromissos", "selecionado pelas elites mundialistas", "um puro apparatchik", são algumas das acusações em O Verdadeiro Rosto de Manuel Valls, onde sobressaem ataques mais sórdidos, como o dizer que passou de pró-palestiniano a pró-israelita assim que se casou, em segundas núpcias, com uma violinista judia. A própria Marine acha Valls "um homem perigoso, que não respeita as liberdades individuais e públicas".

O que está em causa, para já, são as departamentais, em que as sondagens dão 30% de intenções de voto à FN, confirmando o estatuto de primeiro partido que conquistou nas europeias do ano passado, quando obteve 25% e ganhou mais assentos em Estrasburgo do que os partidos portugueses somados. Mas em França o que conta mesmo são as presidenciais, afinal o chefe do Estado é que preside ao conselho de ministros, e por isso 2017 será um ano decisivo, com Marine cada vez mais ambiciosa perante um PSF que deverá recandidatar Hollande e uma UMP, a direita clássica, que tudo indica apostará no ex-presidente Nicolas Sarkozy.

Curioso é que a Sr.ª Le Pen e Valls sejam imaginados num duelo em 2022, nas presidenciais seguintes. Pelo menos é esse o cenário de Submissão, o mais recente livro de Michel Houellebecq, que culmina na vitória de um político muçulmano contra a candidata da extrema-direita, com Valls a ficar--se pela primeira volta e a juntar-se numa bizarra frente republicana que apoia Ben Abbes, a personagem presidencial inventada pelo escritor.

Ora, a chamada frente republicana, que costuma congregar todas as forças contra a FN caso esta esteja em condições de derrotar um candidato dos partidos tradicionais, funcionou bem no passado, sobretudo em 2002, quando Jacques Chirac esmagou o pai Le Pen com o voto não só dos neogaullistas mas também da esquerda. Funcionou também para manter uma lei eleitoral que afastava do parlamento um partido que recolhia mais de 10% dos votos. Hoje, porém, há tentações na direita de entendimento com a FN, mesmo que os mais argutos da UMP saibam que arriscam ser submergidos pela extrema-direita e prefiram antes apoderar--se de alguns cavalos de batalha. Sarkozy fê-lo quando se tornou defensor de mais poder à polícia e de novos limites à imigração.

Da direita vieram agora críticas à frase do medo dita por Valls, com deputados a afirmarem que o primeiro-ministro socialista fazia o jogo da FN ao elegê-la como rival. Na verdade, Valls pretende, sim, mobilizar o eleitorado de esquerda, cada vez mais abstencionista, acenando-lhe com o papão da vitória de Marine le Pen. É uma estratégia que resultou há pouco numa eleição parcial , mas que não é garantido que se repita num escrutínio nacional.

É que a economia francesa continua a fazer fraca figura (no ano passado até foi ultrapassada pela do Reino Unido) e em 2015 o crescimento não deve ir além do 1%, abaixo da média da zona euro. Não admira que Hollande tenha apenas 21% de opiniões positivas e Valls se fique pelos 32%, valores preocupantes para quem, num caso, ambiciona a reeleição e, no noutro, vai a meio da carreira.

Na verdade, Valls não disse que tinha medo a título pessoal. Tinha medo pelo país. Vindo de quem vem, é um alerta fortíssimo. O primeiro-ministro nasceu em Barcelona e naturalizou-se, o que significa que é francês por escolha. Campeão da república, promete mão dura com aqueles que querem fazer do islão um inimigo de França, mas também não pactua com os paladinos da pureza gaulesa, que proliferam na extrema-direita. No fundo, quer que a França se mantenha fiel a si própria, um país que aceita que o primeiro-ministro (e mesmo um presidente) possa ter nascido estrangeiro, algo que nem os Estados Unidos preveem. Claro que ser catalogado de "Sarkozy socialista", como lhe chamou em tempos a Economist, não favorece um político que quer congregar a esquerda para fazer barreira a uma FN que mete medo.


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/03/15

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