21/03/2015

GUSTAVO PIRES

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Quanta Verdade são
 os Treinadores de Futebol
Capazes de Suportar?

O futebol é um jogo de confronto direto entre duas equipas. Só existe jogo se o confronto se concretizar na disputa do resultado. Assim, cumpre-se o princípio básico da dialética de confronto que determina a lógica do pensamento estratégico que, enquanto ato criativo de análise e reflexão, num ambiente agónico, quer dizer, conflitual e competitivo, a partir de uma dada missão, avalia e organiza recursos tangíveis e intangíveis, estabelece e hierarquiza metas e objetivos e determina os procedimentos e as ações a desencadear pelos agentes envolvido.

Como, há muito, refere o Prof. Manuel Sérgio, o desporto é rendimento, é medida, é recorde e é espetáculo, o espetáculo de maior magia à escala do Planeta que envolve milhões de adeptos por esse mundo fora. Todavia, uma coisa são as opiniões do apaniguado quando usa a informação que recolhe de cada jogo e do ambiente que o circunda e outra, completamente diferente, o pensamento estratégico do treinador que, sustentado nos conhecimentos teóricos de uma prática refletida, através de modelos de análise, elabora conjeturas suscetíveis de serem corroboradas na realidade prática vivida em cada jornada do campeonato.

O pensamento estratégico, muito provavelmente, é tão velho como a história da humanidade. A sua tradição chega-nos principalmente dos militares de T`ai Kung (± 900 a.C.) e Sun Tzu (± 500 a.C.) a Liddell Hart (1895-1970); André Beaufre (1902-1975) mas, chega-nos também um extraordinário manancial de conhecimentos produzidos por civis tais como, entre outros, Tucídides (460 a.C. - 400 a.C.) e Nicolau Maquiavel (1469 -1527) ou, mais recentemente de John Keegan (1934-2012) ou Henry Mintzberg.

Se olharmos para o mundo do desporto, Leon Teodorescu, com o trabalho “Problemas do Treino nos Jogos Desportivos Colectivos” publicado em 1957 começou a tratar as questões relativas à organização do jogo e Friedrich Mahlo em 1969 com a publicação d’ “O Ato Tático em Jogo” introduziu, do ponto de vista teórico, a dimensão tática na análise do jogo. Em termos mundiais, estas obras inauguram o pensamento dos treinadores para além do ensino e do treino do gesto técnico. No que diz respeito ao futebol, em Portugal, Adriano Peixoto editou em 1947 “O Futebol Português e o Sistema de Herbert Chapman” e, em 1965, “As Grandes Táticas do Futebol”. Cândido Oliveira (1897-1958)em 1947 publicou “Os Segredos do Futebol: Técnica de Ensino, Aprendizagem e Treino, Tática de Jogo” e Augusto Sabbo (1887-1971), em 1948, uma obra de 321 páginas, intitulada “Estratégia e Método Base do Futebol Associativo Científico” que, pelo seu rigor de análise circunstanciado à cultura de um determinado tempo, marcou uma época. Neste livro que devia ser de leitura obrigatória para qualquer treinador Augusto Sabbo faz a rutura com aquilo a que então se designava por “futebol arte” e avança com um novo paradigma o do “futebol científico”.

Na perspetiva de Jean-Paul Charnay diremos que, enquanto fenómeno mental, a estratégia é suscetível de ser utilizada num grande número de domínios e de comportamentos. Por isso, existe todo um conhecimento adquirido e sistematizado ao longo dos séculos da história da humanidade que, só por ingenuidade ou ignorância, pode ser dispensado por todos aqueles que se dedicam à profissão de treinadores das mais diversas modalidades desportivas em especial o futebol que, do ponto de vista social, económico e político, supera todas as outras. Porque, o pensamento estratégico, no abstrato da oposição das partes, na agonística do jogo e na dialética de vontades, abre um vasto campo de reflexão que deve suportar o processo de tomada de decisão nas suas dimensões política e técnica no âmbito do desporto em geral e do futebol em particular.

Quer dizer, o pensamento estratégico antecede em tempo e oportunidade o sistema de jogo enquanto conjunto tático de modelos (p/ex. no futebol: 4.4.2; 4.3.3; 4.2.3.1; etc.) que, em interação dinâmica, estruturam e dão um sentido de finalização à operação da equipa. Para além destas configurações táticas que, muitas vezes, não passam de uma influência da moda, há muitos jogos e campeonatos perdidos por completa desorientação do pensamento estratégico dos treinadores.

Os campeonatos já não se jogam como outrora na ludicidade de uns desafios que serviam para entreter as massas durante os fins-de-semana de modo a retemperar-lhes as forças para mais uma semana de trabalho. Hoje, os resultados desportivos estão intimamente ligados a resultados económicos, sociais e políticos que ultrapassam a vida das equipas e dos clubes. Ora, quando os resultados se tornam determinantes em sectores da vida económica, social e política que transcendem o próprio clube, acabam, também, por alterar a lógica do jogo.

E se a lógica do jogo se altera, porque mais vale jogar mal e ganhar do que jogar bem e perder, para além do entusiasmo dos adeptos, o comportamento não só dos treinadores como dos próprios dirigentes deixa de poder ser igual ao do passado em que os interesses envolvidos não iam muito para além do divertimento dos jogos do campeonato, sem consequências para além do resultado e da posição mais ou menos honrosa da equipa na tabela classificativa.

Assim sendo, a arte do treinador, que se traduz na sua atitude estratégica relativamente à preparação de em cada jogo em particular e no campeonato em geral, está transformada numa questão fundamental na organização da vitória que determina a vida das equipas, dos clubes, das regiões e dos próprios países. Quer dizer, na dialética de confronto de cada jogo em particular e do campeonato em geral, o treinador, passou a ser uma peça fundamental na medida em que as consequências das suas decisões ultrapassam as circunstâncias do próprio jogo.

Hoje, é reconhecido que os conhecimentos provenientes da dialética de pensamento da “arte da guerra” se aplicam aos mais diversos ambientes agónicos onde se confrontam diferentes vontades. E assim é porque, por via de regra, este tipo de ambientes são de grande turbulência em que nada é tido como certo pelo que o acaso espreita a qualquer momento. Para caracterizar ambientes deste tipo, os militares americanos utilizam o acrónimo VICA (na língua inglesa é VUCA) para os descreverem. O acrónimo significa:

• Volatilidade;
• Incerteza;
• Complexidade;
• Ambiguidade.

A vermos bem, os treinadores são obrigados a trabalhar em ambientes:

• Voláteis porque mudam de forma, fácil e frequentemente;
• Incertos porque desencadeiam um estado de dúvida permanente;
• Complexos porque as variáveis em equação são de difícil apreensão;
• Ambíguos porque sugerem caminhos opostos para a resolução do mesmo problema.

Nestas circunstâncias, dominar os fundamentos da estratégia é uma questão de vida ou de morte para qualquer treinador na medida em que pode estabelecer a diferença entre a vitória e a derrota da sua equipa.

Repare-se que existem dezasseis, dezoito ou vinte equipas a disputarem as primeiras ligas europeias, mas só uma pode ser campeã. Os interesses em disputa são enormes, não sendo sequer possível, qualquer estratégia de cooperação que vá muito para além do “fair play financeiro” que se tem revelado pouco útil. Como tal, sem qualquer outro objetivo que não seja ganhar, os clubes das mais diversas ligas lutam entre si a fim de preservarem a própria existência:

• Em primeiro lugar, dentro dos recintos desportivos pelos resultados desportivos;
• Em segundo lugar, fora dos recintos desportivos pelos resultados financeiros.

Assim, a competição assume um padrão de violência extremamente acentuado na medida em que os clubes, ao contrário daquilo que acontecia ao tempo em que os aspetos económicos e financeiros não dominavam os campeonatos, já não competem entre si pelo prazer da prática desportiva mas pela própria sobrevivência desportiva e económica.

Em conformidade, em muitas circunstâncias, a violência competitiva disparou para níveis inaceitáveis na medida em que põe em causa a própria existência do jogo e do campeonato. Em consequência o futebol vive na necessidade de gerir um paradoxo de extraordinária complexidade: por um lado, a violência que anima o jogo não pode disparar para níveis incontroláveis sob pena do futebol deixar de ser uma atividade educativa, económica, política e social, por outro lado, qualquer tentativa de erradicar a violência subjacente ao jogo de futebol acabará por o desligar do poder profundo que sustenta o interesse dos adeptos.

Por isso, do ponto de vista do pensamento estratégico dos treinadores, o futebol moderno:

• Obriga a uma adaptação acelerada às mudanças que ocorrem num ambiente agónico em transformação constante;
• Exige um conhecimento novo que já não é só oriundo da experiência prática mas dos dados mais recentes da investigação histórica, social e científica;
• Requer uma capacidade quase sobre-humana para manter o equilíbrio emocional no confronto de vontades que, semana após semana, acontece ao longo de uma época;
• Mobiliza a comunicação social que quanto mais o ambiente arde mais ela lhe atira com gasolina;
• Desafia a racionalidade quando se projeta na sociedade ao mobilizar centenas de milhares de apaniguados, tal horda incontrolável que, de um momento para o outro, crucifica o treinador.

Como referiu Friedrich Nietzsche (1844-1900) “… é cómodo acreditar naquilo que nos consola. Mais difícil é perseguir a verdade. Quanta verdade são capazes de suportar?” Quanta verdade são os treinadores de futebol capazes de suportar? (a continuar)

Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana

IN "A BOLA"
12/03/15

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