16/03/2015

CLARA MACEDO CABRAL

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Lulu Landwehr 2

Sonhava diariamente atirar-se contra o arame electrificado e acabar de vez com aquilo, mas a irmã, a quem deve a vida, não deixava

Como é que se transmite a outrem uma experiência absolutamente vedada, selada, inacessível, física e psiquicamente? Tinha ela 15 anos, os húngaros ocuparam a região da Transilvânia onde nascera; de 40 a 44 introduziram numerus clausus para judeus na sua escola; no primeiro dia de Maio de 44, o seu bairro, incluindo a casa de duas assoalhadas da família, ficou circunscrito como gueto. Aos 19, foi para Auschwitz. Ficou lá três meses, mas disse-me várias vezes que um segundo ali teria bastado para várias vidas. Depois para Fallersleben, onde trabalhava 12 horas por dia para produzir os mísseis V-2. 

Foi libertada em Salzwedel. Pedi-lhe para gravarmos o que me contava em primeira mão. Durante quase 50 anos, calara--se, como tantos sobreviventes. Era preciso rasurar para viver, disse Primo Levi. Mas mesmo com o silêncio, aquilo voltava como suplício, de todas as formas e feitios, à noite, em pesadelos de alguém a persegui-la e aos seus, a cada vez que foi mãe, depois avó, a cada vez que a sua sensibilidade tacteava o anti-semitismo. 

Vinte anos passados sobre o que ela me contou, o que mais retenho é a devastação que a recordação envolvia. Ficava totalmente alquebrada. Precisava de horas para articular quatro ou cinco frases, frequentemente a voz extinguia-se até ao dia seguinte. 

Sonhava diariamente atirar-se contra o arame electrificado e acabar de vez com aquilo, mas a irmã, a quem deve a vida, não deixava. Duci (petit nom de Magdalena) era a lutadora, foi ela que roubou o resto do repolho do caixote de lixo da cozinha e se arriscava a pagar com a vida as migalhas extra, essenciais à sobrevivência. Tinham-se uma à outra, uma excepção só possível por serem fisicamente muito diferentes; os pais, uma irmã e um sobrinho tinham morrido à chegada. Não as aterrorizava morrer, mas que uma partisse e a outra ficasse. Tomaram a decisão de que sobreviveriam ou morreriam juntas, só isso permanecia em sua posse. 

Na abundância, o que não se esquece! Estragamo-nos com ela, pois envolve sempre desperdício. E é como se os bens mais preciosos perdessem frescura, começassem a apodrecer. Esquecemo-nos de tudo. O valor de um paninho do tamanho de um pano de limpar os óculos. O valor de ter a barriga cheia, a sede saciada, uma noite bem dormida, o calor entranhado no corpo. O valor da paz e da amizade. Esse bolo de anos que elas fizeram, em frente das SS, com a ração da fatia diária de pão, poupada ao longo de uma semana à custa de fome, a fim de empilharem as fatias, verem erguer o bolo e, depois, cantarem os parabéns à amiga, no seu dia de anos. 

Já sabemos tudo, já ouvimos tudo? No dia em que os americanos libertaram o seu campo – em breve se perfazem 70 anos: foi a 14 de Maio de 1945 --, não houve qualquer euforia. Os aviões eram pássaros de prata num céu azul. Abriram-lhes os portões, viram os alemães fugirem ou entregarem-se, ouviram o ribombar dos canhões. Não se pode regressar, subitamente, à vida. Se algum pensamento ou emoção os rondava, era ainda o medo, o pânico: e agora, o que vai ser de nós? Para onde vamos? 

Fizemos as gravações em muitos sítios, em passeios no Paredão, em Paris, mas sobretudo na sua casa, em Lisboa, da Rua da Quintinha. Onde eu a visitava quase todos os dias, a seguir ao trabalho. Era um apartamento moderno, pequeno e confortável. Algum do mobiliário era proveniente da companhia Mainline, que ela fundara com o marido em Brasília. Havia as esculturas em ferro da Vivi, a filha, e o quadro de um tucano pintado a óleo, também por ela. A Lulu gostava da cor branca, espalhada por sofás, tapetes, gatos, e até o seu cabelo louro era quase branco. No aparador tinha candelabros com velas que acendia com frequência. E existia um terraço com vista alta sobre o Tejo, o céu, o rio e a luz branca de Lisboa. Muitas vezes abria--me a porta descalça, dando um pé de dança, a música brasileira enchendo o apartamento. Levou anos até conseguir apreciar a alegria e ligeireza do Carnaval brasileiro, contava. 

Os gatos quase albinos, com os narizes rosados, eram silenciosos. Trepavam-lhe pelas costas acima, subiam--lhe para os ombros, desciam-lhe para o colo, deixavam-na, sem uma queixa, seriamente arranhada. Muitas vezes traziam as marcas do seu batom no pêlo. Teve vários. Tinham autorização para trepar para todo o sítio, abstinha-se de proibir-lhes os movimentos e ficou sempre com remorsos de ter esterilizado a Mitzi fufi, a primeira de que me lembro. Era tímida e enfiava-se dentro do roupeiro do quarto mal assomavam as frequentes visitas. A Lulu estava sempre a convidar pessoas para comer ou jogar brídege, tinha a casa cheia aos fins-de-semana, enchia o aparador com comida com um toque mais húngaro que brasileiro e havia, em particular, aqueles bolinhos maravilhosos, pequenos, de uma massa que ela tendia, cortava como envelopes e enrolava com recheio de compota de framboesa. Comiam--se quentes, saídos do forno, e polvilhados com açúcar branco. 

“Sou uma cidadã do mundo”, dizia, uma judia da diáspora, da dispersão, traduzia ela. Queria pertencer à diáspora. Não sai mais do Brasil, mas sairia se pudesse, porque a Europa lhe faz falta. No próximo dia 23 de Maio, a Lulu faz 90 anos. Disse-me uma vez que, com a sua morte, o mundo vai perder alguma graça. Acredito que sim. 

Escritora, a viver em Londres 

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13/03/15 

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