09/01/2015

HELENA CRISTINA COELHO

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O evangelho dos bárbaros

“A morte de qualquer homem diminui-me porque faço parte do género humano”, escreveu John Donne. “E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.” Hoje eles dobram pela liberdade, hoje dobram por Charlie. Há coisas que gente bárbara e cobarde nunca irá entender.

Não percebem que a liberdade é um direito, que a tolerância é uma partilha, que o respeito é uma conquista, que o mundo é um universo de diferenças. E nunca o irão perceber enquanto encararem a religião com fanatismo, os ditadores como heróis, o humor como blasfémia, o jornalismo como crime.

Um cartoon, um editorial, uma fotografia, uma reportagem são armas poderosas. O seu poder está no que revelam, no que expõem, no que denunciam, no que criticam, no que reflectem, sem algemas, sem vendas, sem prisões. São armas, mas não matam. Revelam as diferenças entre os que libertam e os que oprimem, os que resistem e os que cedem, os que verdadeiramente merecem o céu e aqueles que nunca deviam ter saído do buraco negro onde vivem escondidos como ratazanas. São armas que não matam, por isso é que moem.

E por isso é que bárbaros como aqueles que ontem mataram cidadãos livres em Paris, a coberto de uma vingança que mais não foi que um crime cruel e hediondo, vestiram a pele de carrascos de uma liberdade que eles próprios não conhecem e nunca conquistaram. É indiferente o deus que veneram. Não há evangelho que justifique tanto terror, tanta barbárie, tantos criminosos. Não há aqui religião, apenas cegueira. Não há profissão de fé, apenas estupidez.

A resistência é, por isso, uma arma contra o medo, os ataques, os tiranos, os terroristas, os canalhas. Contra a intolerância, um vírus que se alimenta destes crimes para sustentar partidos extremistas e movimentos de ódio anti-tudo, da religião à imigração, mas que apenas reforçam os argumentos desses mesmos criminosos. Um medo que é preciso eliminar antes que inflame mais ódios numa Europa cada vez mais insegura e desconfiada. E não se pense que esta é apenas uma ameaça à liberdade de expressão, aos jornalistas, aos cartoonistas. É uma ameaça a todos os cidadãos, a todos os homens e mulheres livres. Mas é por esses bárbaros não entenderem o que vale a liberdade que não vão conseguir matá-la. Por mais balas que atirem, por mais fogos que ateiem, por mais vidas que roubem, o pensamento continuará livre, as mãos continuarão a desenhar e a escrever e a fotografar, as vozes continuarão a ouvir-se.

As palavras de John Donne, distantes de toda esta barbárie, não poderiam ser mais certeiras. "Nenhum homem é uma ilha isolada, cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa toda fica diminuída, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria casa. A morte de qualquer homem diminui-me porque faço parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti." Hoje eles dobram alto e a bom som pela liberdade. Hoje eles dobram por Charlie.

IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
08/01/15

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