29/12/2014

JOÃO MIGUEL TAVARES

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O armário de 
Carlos Abreu Amorim

Os ataques lusitanos à ideologia liberal utilizam invariavelmente a seguinte táctica: primeiro chamam vaca a um porco, e depois acusam-no de não dar leite. Assim é fácil.

Desde que Zita Seabra abandonou o PCP que eu não assistia a tamanho entusiasmo com uma saída do armário ideológico nacional. Aconteceu no domingo, numa entrevista publicada neste jornal. Autor do coming out: Carlos Abreu Amorim. Motivo: segundo o deputado do PSD, parece que após a crise internacional, “mas sobretudo neste mês muito intenso na comissão do GES”, as suas convicções sobre o liberalismo foram profundamente abaladas. E por isso, decidiu anunciar ao mundo (“até estou comovido”) a seguinte conclusão: “Já não sou liberal.” E isto porquê? Porque “tem de haver mais autoridade do Estado. O Estado tem de ter força”.

Vai daí, o PÚBLICO dedicou-lhe dois editoriais, afirmando no primeiro deles que “a crise financeira de 2008 acabou com as ilusões e são cada vez mais as vozes de dentro do sistema a denunciar as políticas ultraliberais. Abreu Amorim descobriu agora. Mais vale tarde...”. E o meu colega de página Rui Tavares clamou ontem por “trancas à porta”, recuperando essa popular história da carochinha que é o alegado liberalismo do actual Governo: “Com a crise financeira e a rédea solta que foi dada à banca para as suas depredações, houve mesmo um assalto – e as vítimas fomos todos nós. Nos quadrantes liberais, porém, não se reconhece o que aconteceu: puro e simples estado de negação.” Ora, eu acho que o confronto político é essencial nas sociedades democráticas. Só que isto não é confronto nenhum – isto é pura salganhada ideológica. 

Salganhada 1: ser liberal não tem nada que ver com aquilo a que agora se chamam “as políticas ultraliberais”, mera caricatura de um capitalismo selvagem que ninguém com dois dedos de testa pode defender. Não existe defesa da propriedade privada ou do mercado livre – pedras angulares de qualquer liberalismo – sem a presença de um Estado eficaz e regulador. 

Salganhada 2: ser liberal não significa a diminuição da autoridade do Estado, mas sim a diminuição do peso do Estado na economia, que são coisas completamente diferentes. Passa pela cabeça de alguém afirmar que Margaret Thatcher ou Ronald Reagan – os dois grandes papões liberais, segundo certa esquerda – foram líderes fracos, aos quais faltou autoridade? Salganhada 3: a desregulamentação nos mercados anglo-saxónicos é um problema gravíssimo, que deve ser enfrentado, mas não foi a causa directa do afundamento de Portugal. Só um doido pode achar que os principais problemas de economia portuguesa são semelhantes aos da economia inglesa ou americana.

Os ataques lusitanos à ideologia liberal utilizam invariavelmente a seguinte táctica: primeiro chamam vaca a um porco, e depois acusam-no de não dar leite. Assim é fácil. Só que, sendo fácil, não é sério, tal como não pode ser séria a saída do armário de Carlos Abreu Amorim. Se ele fosse membro do Tea Party, poderia certamente argumentar que a desregulamentação assolapada dos mercados e o regresso dos bónus chorudos a Wall Street o tinham feito repensar a sua ideologia, e que por isso concluíra que o Estado precisava de ser mais forte. Impecável pensamento made in USA. Mas em Portugal? Não gozem connosco. Em Portugal não existe Estado forte e economia fraca, nem Estado fraco e economia forte, pela simples razão de que uma coisa não se distingue da outra desde 1143. Nesse sentido, ainda vivemos num mundo pré-ideológico. Enquanto não se nacionalizar o Estado e privatizar a economia, Carlos Abreu Amorim continuará a sair de um armário que não existe.

IN "PÚBLICO"

23/12/14


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