14/10/2014

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HOJE NO
"i"

Kobane. 
As mulheres no combate 
ao Estado islâmico

Dilar Gencxemis, que deu a vida para matar dezenas de militantes do EI, e Mayssa Abdo, que está a liderar as YPG na fronteira sírio-turca, são duas das cerca de 10 mil mulheres que lutam contra o radicalismo islâmico na linha da frente

A cidade curda de Kobane, na fronteira da Síria com a Turquia, está largada ao esquecimento. Até agora mera suspeita, depois de semanas de confrontos entre os cerca de 9 mil militantes do Estado Islâmico (EI) e 2 mil curdos das YPG (Unidades de Protecção do Povo) iniciados a 16 de Setembro, isso ficou claro há quatro dias, quando um alto cargo da administração Obama, Tony Blinkin, declarou em Londres: "Kobane não é uma prioridade, o Iraque é que é."
Dilar Gencxemis

Kobane está imersa em batalhas campais há um mês, a escassos 92 metros da Turquia, numa fronteira apenas dividida por uma linha de caminhos-de-ferro. A cidade está hoje totalmente cercada pelos militantes sunitas extremistas que, em Junho, declararam a instalação de um califado na Síria e no Iraque e que entraram no enclave com artilharia pesada e tanques roubados às forças iraquianas. No plano de conquistas territoriais do EI, a cidade tem uma importância extrema: a sua tomada, refere o "Washington Post", "dar-lhe-ia controlo de uma faixa de terreno importante na fronteira sírio-turca que permite expandir as suas rotas de abastecimento".

Kobane parece ser a versão actual da Varsóvia de 1944: nesse ano os nacionalistas polacos esperaram em vão pelo Exército Vermelho para os proteger dos nazis e os pedidos de ajuda aérea foram ignorados por uns Estados Unidos que tinham acabado de confirmar o seu apoio ao ditador soviético, Estaline, como aliado da Realpolitik na Segunda Guerra Mundial. Setenta anos depois, os EUA dizem que Kobane - para onde milhares de cristãos e árabes fugiram à tomada de partes da Síria pelo EI nos últimos meses - não é suficientemente importante para integrar a lista de alvos dos bombardeamentos aéreos, e a Turquia, que se opõe tanto ao EI como aos curdos, continua a prometer enviar apoio que tarda em chegar.

"Não nos enviem comida, não precisamos de comida", dizia um homem prostrado aos pés de um membro da Fundação de Caridade Brazani, uma ONG com base no Curdistão do Iraque que entrou em Kobane há alguns dias. "Comeremos lama se for preciso. Enviem-nos armas e peshmergas [combatentes curdos do Iraque]", pediu, beijando os pés de Musa Ahmed, vice-director da fundação. Ao seu lado, um outro curdo assistia à cena com lágrimas a escorrer-lhe pelas faces.
Narin Afrin

Entregues a si próprios, os habitantes da cidade estão a tentar resistir aos avanços do EI como podem, recorrendo às AK47 e outras armas menores, quando postas ao lado da artilharia pesada dos militantes sunitas. São as YPG que estão a fazer a maior parte do trabalho e, dentro delas, as mulheres são rainhas.
Enquanto os Estados Unidos se preparam para autorizar soldados do sexo feminino a combater no terreno a partir de 2016, algo inédito na história do país, nas comunidades curdas as mulheres sempre lutaram ao lado dos homens. E, dada a situação em Kobane, são elas quem angaria grande parte das atenções mediáticas nos combates ao EI.

Nos últimos dias, os jornais internacionais repetiram a história de Dilar Gencxemis, nome de guerra Arin Mirkan, mãe de dois filhos e comandante das YPG que se fez explodir em pleno combate com militantes do EI, firmando a morte de dezenas de inimigos. Neste momento, um terço dos membros dessas unidades, ligadas ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que a Turquia e o Ocidente classificam como grupo terrorista, são mulheres. Mayssa Abdo, de 40 anos, nome de guerra Narin Afrin, está no comando da milícia curda síria, braço armado do Partido Democrático Curdo (PYD), correspondente ao turco PKK na Síria. Avesta, combatente curda de 24 anos a quem a "Foreign Policy" dedicou várias páginas há um mês, comanda 13 soldados, oito dos quais mulheres.

Numa nova edição da "Dabiq", a revista do EI, publicada no domingo, um artigo justifica a prática de vender mulheres e raparigas, na sua maioria Yazidis (comunidade étnico-religiosa curda), e de as violar diariamente para forçar a sua conversão ao islão. Mas é delas que os militantes fogem em plena batalha.
Ao contrário dos parceiros de guerrilha masculinos, as mulheres das YPG são temidas pelos membros do EI, que acreditam que vão directos para o Inferno se morrerem às mãos de uma mulher. "Não é um mito, é real. Conheci militantes do EI e sei que eles acreditam que não vão para o Paraíso se forem mortos por uma mulher. É por isso que fogem quando avistam uma mulher, vi isso a acontecer na frente de Celega", explicou uma combatente curda ao "International Business Times". "Nós monitorizamos as chamadas via rádio e quando eles ouvem a voz de uma mulher ficam histéricos."
Há quem diga que o destaque que as mulheres têm tido nestas lutas é uma manobra de propaganda dos líderes curdos, que, aproveitando-se das atitudes opressivas e primitivas do EI, que se revelam também na forma como tratam e olham o sexo feminino, estarão a tentar limpar a sua imagem. No passado, o PKK usou mulheres-bombistas em alguns ataques na Turquia, numa guerra de 30 anos que foi suspensa há dois com a abertura de um diálogo de paz entre o governo e os curdos. Isso sempre alimentou o ódio da generalidade dos turcos em relação à minoria que pretende instalar o seu próprio estado do Curdistão.

Agora que as cerca de 10 mil curdas das fileiras de combatentes na Síria estão a ganhar destaque e importância, dentro e fora de Kobane, a forma como os curdos são vistos pela população turca também está a mudar: a repetição até à exaustão da hashtag #ArinMirkan no Twitter e os elogios na internet às YPG e aos curdos de Kobane por utilizadores turcos são provas disso. "Não podemos separar Kobane da Turquia", dizia há uns dias ao "DailySabah" Kurd Mehmet, turco de 26 anos. "A Arin sacrificou a sua vida por todos. Os atentados suicidas vão espalhar-se pela Turquia se [o EI] tomar Kobane, porque os que estão no lado de lá da fronteira são nossos irmãos."

Apesar de Kobane não ser uma prioridade, os EUA lançaram anteontem alguns ataques aéreos aos arredores da cidade, dando algum fôlego aos combatentes no terreno. Pelo contrário, a Turquia continua alegadamente a impedir a entrada no país de curdos em fuga, detendo curdos sírios na fronteira, e há rumores de que está a tentar aliar o planeado envio de tropas para a Síria e o Iraque (ainda por aplicar) à vontade de derrubar tanto o regime de Bashar al-Assad como os cantões que o PYD tem estabelecido na fronteira.

Cronologia
2004 
Abu Musab al-Zarqawi estabelece a Al-Qaeda no Iraque (AQI)
2006  
Sob a liderança de al-Zarqawi  AQI inicia guerra sectária contra comunidade xiita, maioritária no país. Em Junho, o líder é morto num ataque aéreo dos EUA; em Outubro, o novo líder do AQI, Abu Ayyub al-Masri, anuncia a criação do Estado Islâmico do Iraque (ISI) e escolhe Abu Omar al-Baghdadi como líder
2010  
Abu Bakr al-Baghdadi assume liderança do ISI após Abu Omar al-Baghdadi e Al-Masri serem mortos numa operação conjunta dos EUA com as forças iraquianas 

 2013  
OISI anuncia a absorção da Frente al-Nusra, grupo de militância da Al-Qaeda que combate o regime sírio; Al-Baghdadi declara que grupo passa a chamar-se Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Dias depois,
o líder da Al-Nusra, Abu Mohammed al-Jawlani, rejeita anúncio de Baghdadi
Fevereiro 2014  
Al-Qaeda renuncia todos os laços com o ISIS após meses de lutas sangrentas entre o grupo e a Al-Nusra
Junho 2014  
ISIS toma o aeroporto, estações de televisão e gabinete do governador de Mossul, segunda maior cidade do Iraque, e liberta mil prisioneiros do país. Dias depois assume controlo de Tikrit, de Al-Qaim (na fronteira com a Síria) e de outras três cidades iraquianas. OCurdistão fecha as fronteiras para a região quando o número de refugiados aumenta. A 29 de Junho, o ISIS anuncia a criação do califado (Estado Islâmico) na região e Baghdadi declara-se líder dos cerca de 1,5 mil milhões de muçulmanos de todo o mundo

* Heroínas trituradas pelos donos da indústria de armamento.



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