17/09/2014

CLARA FERREIRA ALVES

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UNS CAÇAVAM, 
OUTROS NÃO


A quinta do José Guilherme, construtor da Amadora, tornou-se obrigatória, agora que a cornucópia de Angola substituíra a Europa e o império. 
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Lembro-me do dia em que o progresso chegou a Portugal. Chegou antes da democracia, sem estrondo. Num anúncio: Pois, pois, J. Pimenta! J. Pimenta foi o primeiro construtor civil da nossa história. Repetia-se a propósito de tudo e de nada, pois, pois J. Pimenta! Dizia-se à boca pequena que o que o homem fazia era construção rasca, da que inundaria os subúrbios de Lisboa em sucessivos avatares. Se bem me lembro, como diria o Nemésio, o J. Pimenta construíra praticamente uma cidade-satélite chamada Reboleira, junto à Amadora, que se tornou tão famosa como o seu progenitor. 

O que entrou no imaginário popular, se tal coisa existe, foi a ideia de que todo o empreiteiro ou negociante bem-sucedido, todo o bimbo endinheirado pré-democrático, deveria estabelecer a amante num apartamento da Reboleira. Apesar de muita gente morar no enclave, a reputação era esta. 

Era uma espécie de parque temático dessa figura imortal da nossa vida coletiva que é a amante, confundida com a corista do Parque Mayer para os rendimentos mais altos. Parte desta anedota tinha a ver com o nome da coisa, Reboleira. E o glorioso fundador era o J. Pimenta, putativo criador da nomenclatura T1, T2 e por aí fora. Inventor da marquise, e sabe Deus como a marquise é um adereço querido por gente tão importante como o nosso Presidente da República. A marquise c’est moi, a marquise somos nós, a marquise é Portugal. 
O construtor civil simbolizava o progresso português, enquanto o país iniciava a destruição do parque industrial e substituía o operário da fábrica e da metalomecânica pelo trabalhador das obras, de preferência negro e barato e emigrante das ex-colónias. Restos do império. 

O país tornou-se uma imensa Reboleira. Os primeiros trabalhadores a inaugurar a era do progresso, mão de obra semiescrava, foram “os cabo-verdianos”. Depois vieram os angolanos, moçambicanos, guineenses, e por fim os brasileiros e os da Europa de Leste. O país, inchado de gozo e inundado de fundos europeus, sem indústria, sem pescas, sem agricultura, construía e subconstruía, prosperava, corrompia ajudando os partidos a viver. Lá vai a contribuiçãozinha para a campanha, senhor doutor, que nunca me esqueço. 
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Com a descentralização e a criação das autarquias, a figura do construtor civil tornou-se, junto com a figura do empresário do futebol (quase todos construtores civis), um dos fermentos do novo Portugal. O empreiteiro foi o grande mestre de obras da nossa democracia alimentada a caixas de robalos, uísque velho, relógios de ouro, trouxas de ovos e “contribuições”. 
Em Portugal achava-se que sobrara uma pequeníssima elite, vagamente fascista, vagamente democrática, que se mantinha à parte e nunca, nunca se misturava com o construtor civil da Amadora, essa figura matricial. Uma gentinha ignara, que fungava, não sabia usar o talher de prata e ostentava amantes oxigenadas, não devia passar desses subúrbios onde crescera e se tornara essencial ao regime. Não ouvia ópera e não penetrava o pórtico da casa senhorial ou o portão da mansão. Não bebia chá e não frequentava os salões da capital. O seu poiso era a cervejaria. O seu instrumento era o livro de cheques. 
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Sabemos que não é assim. A elite pós-colonial, no seu esforço de autopreservarão, desistiu da separação da cultura de massas e deixou-se contaminar com gosto pelo kitsch televisivo. Acabou a depender (e às vezes admirar) uma classe política que se educara e crescera na escola suburbana, fossem os subúrbios de Lisboa ou os de uma cidade do interior. A marquise tomara conta das cabeças e dos partidos e o poder financeiro teve de fazer alianças com esse poder político, a economia portuguesa resumia-se a isto. A sobrevivência também. 

Um rapaz como Relvas ou como Vara seria dificilmente tolerado por um Marcello Caetano mas no tempo democrático tudo era possível e uns confundiam-se com os outros. J. Pimenta desaparecera e fora liturgicamente substituído pelos Bibis ou por aristocráticas personagens como a que dá pelo nome de José Guilherme, o homem que constrói em Luanda e vive na Amadora. Modestamente. E que pôs casa na Amareleja, não a uma amante mas a uma nova elite que lhe vai comer à mão. A Herdade dos Arrochais, muitíssimo bem frequentada por gigantes do regime, incluindo o homem da marquise existencial e o respetivo genro, ferido por uns chumbos de ricochete e devidamente acompanhado ao hospital e aos cuidados do SNS pela corte dos amigos de José Guilherme. Todos, caramba! O regime à sombra do parreiral no sol alentejano. 
Como diz no seu impagável sentido de humor (ou melhor, no seu sentido de humor caro e pago) o grande Dias Loureiro: “Uns caçavam, outros não!”. A quinta do José Guilherme, construtor da Amadora, tornou-se obrigatória, agora que a cornucópia de Angola substituíra a Europa e o império. Uns caçavam, outros não.

IN "EXPRESSO"

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