14/08/2014

LUCY PEPPER

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Raiva com gema de ovo

Quando um estrangeiro proclama publicamente que alguma coisa, seja uma comida, seja um hábito nacional, é horrenda, porque é que umas pessoas, muitas pessoas, levam isso a peito e reagem com raiva?

Quando uma nação aceita visitantes, incluindo visitantes mundialmente famosos, espera normalmente um fluxo de banalidades e de elogios: “Ah, o vosso país é maravilhoso! É mesmo, mas mesmo bonito!”. A coisa mais negativa que admite são do género “… mas não sou grande fá de cabeças de peixe/sarrabulho/ginjinha…”.

Esta semana, vi este artigo no Guardian sobre Jamie Oliver no Brasil. Foi entrevistado num programa de televisão, e depois de lhe terem feito experimentar uns brigadeiros, um quindim e um beijinho, proclamou que eram todos “uma merda, horríveis, porra”. Ao ouvir isto, parece que o povo do Brasil se zangou de tal maneira que toda a gente correu à internet e à imprensa para escrever coisas abomináveis sobre Jamie Oliver.

Jamie Oliver é suficientemente famoso, e o seu ego suficientemente largo, para ter de se limitar a dizer banalidades insonsas, seja onde for. De facto, a boca indiscreta tornou-se uma das suas ferramentas de carreira, e, embora este incidente possa ter sido uma gafe monumental de marketing, ele não precisa muito de se preocupar quanto ao seu lugar no mundo. Tenho a certeza de que ainda ganhará bem por conta do Brasil.

Quando um estrangeiro proclama publicamente que alguma coisa, seja uma comida, seja um hábito nacional, é horrenda, porque é que umas pessoas, muitas pessoas, levam isso a peito e reagem com raiva? Ouvir tais coisas talvez seja irritante, claro, mas porque é que enfurece tanto?
Deixem-me mudar de conversa durante uns momentos, pode ser?

O Ovo
Adoro ovos. Podem ser escalfados, ligeiramente salgados, a abrirem-se em cima duma torrada cheia de manteiga a derreter. Podem ser mexidos, simplesmente com uma noz de manteiga ou com espargos selvagens ou farinheira. Podem ser estrelados ou cozidos. Podem ser numa omelette, numa tortilla, num quiche ou num “scotch egg” (um ovo com cobertura de carne de salsicha). O ovo é uma grande invenção (inventado pela galinha, claro… que, sim, nasceu primeiro).

Mas há umas centenas de anos, algo estranho aconteceu nos conventos de Portugal. As freiras tinham muitas vestes e hábitos para engomar com as claras de ovo. O que fazer com todas as gemas que sobejavam? Bem, começaram por adicionar açúcar às gemas… e exageraram.

Nos outros conventos do mundo, aconteceu algo parecido, mas aí os exageros envolveram frutos secos e mel. O uso excessivo do ovo nos conventos, pelo que sei, só terá acontecido em Portugal.

Por causa disso, o Portugal de hoje está cheio de pastelarias cujas montras gritam “AMARELO de OVO!!!”, e estranhamente os portugueses adoram. As montras e as balcões nas pastelarias e nos restaurantes abarrotam de montes indiscriminados de ovo: fios, trouxas, tortas, pudins, molhos de ovos, farófias, pães de ló com centro de líquido de ovo, doce de ovos, rebuçados de ovos, ovos moles, e aquela criatura misteriosa, a lampreia de ovos, que ainda hoje continua a servir para mandar convidados de casamentos para o hospital, depois de uma tarde ao sol e ao calor (e porquê uma lampreia de ovos? Porque não algo giro, como um coelhinho de ovos?). Claro que há outros ingredientes, como canela, chocolate, côco, amêndoa e as vezes alguma coisa com um toque a laranja. Mas geralmente, quando pensamos na doçaria Portuguesa, o ovo destaca-se sempre. Tudo sabe a ovo. Ovo “ovoso” — sulfuroso e doce.

Em inglês, há uma expressão, “over-egg the pudding”. É intraduzível para português. Posso traduzir literalmente, claro (pôr ovos a mais no pudim, ou seja, abusar de uma coisa boa até estragar tudo). Mas em Portugal, o conceito de pôr ovos a mais em qualquer coisa não existe, ou antes, é até impensável.

E não é só o facto de 97.5% da doçaria ter ovo em excesso: é que 97.5% dos portugueses desmaiam de amor pela gosma amarela. Se eu vos der um barril de ovos moles e uma colher, a conversa acabará já e vou ouvir apenas os gemidos de prazer gerados por essa gemada. Se eu vos mencionar bolas de Berlim, serão todos transportados até à praia da vossa juventude, a babarem-se só de pensar naquela porcaria enjoativa e pegajosa, comprada de um senhor com um cesto que anda por aquela praia a escaldar há deus sabe quantas horas.

Doces “sobre-ovados” são realmente nojentos. Trinco-os, quando me oferecem, apenas por delicadeza, e se absolutamente necessário. Se isso tudo quer dizer que nunca pertencerei ao Clube dos Portugueses a 100%, assim seja. Não os aturo, não os como, são horríveis, porra.
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E já agora, como se está a sentir? Zangado? Raivoso? Está a gritar diante do écran “como é que ela se ATREVE dizer isso dos nossos ovos abençoados??”? Ou está apenas a sentir pena da coitada da bifa que ainda não descobriu a felicidade que é uma gema doce? E o que é que isso importa? Porquê tanta raiva quando um estrangeiro reage com um “blhek” a uma comida nossa? Irritação, entendo. Incompreensão, entendo. Mas raiva?

Certamente que é irritante — para mim – quando o mundo inteiro critica o estado pobre da culinária britânica, mas o ataque vem quase sempre baseado em grandes generalizações, e muitas vezes com poucas provas. Se faz favor, sim, vá a Londres e diga-lhes que enguias em gelatina são a coisa pior já inventada, ou que a empada que puseram no micro-ondas no pub é uma merda, ou que fish & chips são gordurosos. Ninguém lhe ligará nenhuma.

Há anos, no meu blogue, gozei com o fado, entre outras coisas portuguesas. As ameaças de morte (não estou a exagerar) na sequência desse poste foram as correspondências mais raivosas que recebi na minha vida. Tenho quase a certeza que os autores daquelas missivas também não ligavam muito ao fado. Era só que não podiam suportar a ideia de uma estrangeira qualquer a dizer mal de uma coisa que é deles. Pura raiva.

Porquê?

IN "OBSERVADOR"
09/08/14

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