30/04/2014

HELENA MARUJO

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Felicidade Pública:
.........manifesto contra 
..........a instrumentalização
da felicidade laboral

"That is happiness, to be dissolved into something complete and great”(Isso é a felicidade, a ser dissolvida em algo completo e grandioso), Willa Cather

Mea culpa.
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Tendo sido uma das primeiras pessoas que começou em Portugal a falar da importância da felicidade no contexto laboral,  sinto-me inquieta com o rumo que pode trazer a bandeira de uma abordagem positiva nas organizações em tempo de desertos. 

Guiava-me na altura a vontade de criar lugares de vida mais humanos, de pensar em formas sociais democráticas mais límpidas e evoluídas, em locais de produção de bens e serviços mais vocacionados ao bem-comum. Queria ver mais, no espírito do próprio tempo, do que outra leva de emigração em busca de dignidade, decência e alimento; queria humildemente ajudar a construir um mapa moral e dialogante nas empresas privadas ou públicas, nas fábricas, nos serviços, nos campos, nas escolas, nos hospitais.

Hoje, vejo o tema da felicidade a entrar nas organizações, e devia sentir-me, no mínimo... feliz. Mas antevejo o risco.

Quantas vezes configurada em não mais do que um rol de práticas assentes num irrefletido e vago sentimento moral, numa superficial alegria, e em mais uma forma de instrumentalização de quem trabalha – um novo caminho para maior produtividade, uma outra forma de medir, controlar  e influenciar a satisfação, uma repetição triste de formas manipuladoras de controlo – a possibilidade da felicidade está ainda mais em perigo.

Quando sonhei trazer da investigação para o dia-a-dia dos empregados esse horizonte da felicidade idealizei formas de trabalho, liderança, comunhão relacional e ambiente laboral com verdadeiro compromisso, porque resultado de justiça interna e equidade externa, uma felicidade tecida em redes de pessoas solidárias, compassivas, íntegras e coerentes, com espaços e tempos de autodeterminação e autonomia, sentindo-se competentes e valorizadas, construtoras de coletivos e não apenas de egoístas individualizações, numa clara expressão de evolução da sabedoria conjunta e de uma gramática mista de hedonismo e sentido. Invoquei locais de trabalho que fossem verdadeiras cartografias de pequenas virtudes diárias, desde o CEO ao segurança, do trabalhador do call center ao educador no infantário.

Nunca concebi uma coexistência que convidasse à uniformidade, ao opressivo e falaciosamente entusiasmado, sempre externamente motivado, e muito menos desejei uma felicidade que fosse descontextualizada.

Soube pela pena de Robert Skidelsky, num artigo deste mês de Abril do The New York Review of Books, que há algum tempo as hospedeiras de bordo de uma companhia de aviação norte-americana tinham ameaçado fazer uma “greve de sorrisos”, em resposta às múltiplas tentativas da entidade patronal para aumentar ao limite a eficácia e rapidez do seu trabalho. E relembrei o taylorismo, as prisões circulares de controlo permanente pensadas por Bentham – os panóticos, ainda hoje identificáveis – e a forma robótica e automatizada como, em consequência hoje, ainda e de novo, concebemos o trabalho.

Faço por isso objecção de consciência a todos os que, ao pegar nas novas modas, como parece estar a tornar-se a da felicidade no trabalho, ao inteligentemente perceberem as vantagens desta nova linguagem, a desvirtualizam e desvitalizam, usando-a para trazer as pessoas de volta à submissão, à intimidação, desta vez com propostas disfarçadas de cordeiro, aumentando a descrença em salvações cada vez mais improváveis.

Se tratamos os trabalhadores como máquinas não fiáveis, das quais desconfiamos, e que são substituíveis e meros objetos de produção; se usamos a intimidação para os levar ao limite, e os privarmos da possibilidade de exercer as suas competências e de se educarem e formarem melhor, enquanto lhes negamos a justa e harmoniosa recompensa, entramos em decomposição social, e namoramos o pior do passado e o mais podre da lógica económica: pessoas e locais frios, calculistas e degradantes. Ficamos perante uma nova variação corporativa da dominação, especialmente arrepiante na semana em que celebramos 40 anos do 25 de Abril, que nos permitiu sonhar sermos juntos capazes de práticas democráticas e de uma cidadania resplandecente, com responsabilidade e vigilância.

A felicidade não pode ser o novo endoutrinamento, mais uma floresta do efémero, que seduz pelo superficial, corroendo o vital, uma cortina que esconde o pior do velho império; não pode ser o riso falso ou demoníaco que eclipsa a respeitabilidade ou esconde falsas razões, nem uma proposta que corteja a injustiça. Não podemos nunca permitir as atuais desvertebrações dos trabalhadores para manterem o trabalho, nem novas escravidões, novos medos, novos silêncios, novas censuras, criados pela insegurança e vulnerabilidade social, em nenhum local onde se trabalhe, mas ainda mais em espaços de trabalho onde se fala da importância da felicidade dos empregados. Não podemos ceder às graves e mentirosas inconsistências.

Há semanas, um aluno-trabalhador partilhava connosco numa aula que no seu emprego era proibido falar sobre quanto cada um ganha; se o fizerem, a punição será o despedimento. Algo está profundamente mal quando há temas tabus, que impedem a comunicação, aumentam a desconfiança e limitam a profundidade e espontaneidade das relações. Por isso, apoio o desligar emocional, tal como o propõe Robert Sutton, quando os ambientes laborais são tóxicos, desligar que deverá substituir o convite a outras modas como a mindfulness ou a imaginação positiva/daydreaming, que excelentes em si mesmos, poderão levar a abismos dogmatizantes se o contexto for maléfico e houver elevadas quotas de frustração e indignidade coletivas.  Aí, não deverá haver lugar a elevado comprometimento nem paixão ao que se faz, nem a alegria imposta ou sorrisos obrigatórios e hipócritas, mas sim a formas múltiplas e lúcidas de critica e mudança.

Precisamos de felicidades comprometidas e eloquentes, que levem as vidas dos trabalhadores a correrem como seda, que permitam transgressões ao mal e conjunturas de diálogo, e que se promovam e elevem meramente quando os contextos e as lideranças são equitativas, íntegras, benevolentes e virtuosas.

Como dizia o filosofo russo Pyotr Chaadayev, “Não aprendi a amar a minha pátria com os olhos vendados e a cabeça inclinada.” Não aprenderemos a amar o trabalho e a dedicar-nos a ele de forma verdadeiramente produtiva se nos quiserem de joelhos, silenciados, surdos e cegos, e insensíveis ao fedor do mal. Como investigadora da felicidade, tenho a obrigação também de ser parte da consciência intelectual; e o dever do intelectual, esse luxo dos dias de hoje, é – dizia-o o sociólogo Stanislaw Ossowski já nos anos 1960, pensar de uma maneira desobediente perante os cataclismos civis.

Não deixarei de lutar pela felicidade publica. É talvez uma meta de vida. Mas ou a felicidade rima com dignidade, ou é uma ópera bufa.

Professora universitária no ISCSP/UL.

IN "PÚBLICO"
23/04/14


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