20/12/2013

JOÃO MIGUEL TAVARES

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A esquerda matrioska

Tal como os óculos 3D do cinema, o manifesto 3D filtra a realidade, esbate os contrastes e simula uma profundidade que não existe.

A esquerda portuguesa decidiu que era hora de agir e convergir. E o primeiro passo para a convergência foi a divergência de iniciativas e de projectos.

A nossa esquerda tem um carácter tão buliçoso que é possível que os vários movimentos/partidos que agora estão a alourar venham em breve a desentender-se sobre quem deseja mais o entendimento. Por exemplo, eu pensava que o novo partido de esquerda que desejava a convergência era o LIVRE, do Rui Tavares. Mas, de repente, eis que surge um novo “pólo político” de esquerda, de Daniel Oliveira et al., que ainda deseja mais a convergência do que o LIVRE, na medida em que quer convergir com o próprio partido LIVRE, embora o LIVRE ainda não seja um partido.
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Confusos? Juntem-se ao clube. Uma pessoa põe-se a ler o ainda fresquíssimo “roteiro para a convergência” do LIVRE e descobre que para o partido que ainda não é partido essa é uma questão “primordial”. Uma pessoa põe-se a ler o “manifesto 3D” dos 65 senhores-que-não-estão-filiados-em-partidos-mas-são-super-de-esquerda e descobre que para o movimento que não é movimento essa é uma questão central. Pergunta ingénua: mas então porque é que aqueles 65 senhores não aderem antes ao LIVRE, que chegou primeiro, tendo em conta que todos defendem o chuto no rabo da troika, a perfeição da Constituição, o socialismo e – ponto muito importante – a acção política e a possibilidade da governação?

A única resposta possível é esta: porque o LIVRE não é suficientemente convergente na sua convergência. O LIVRE é apenas um partido enquanto os 65 em 3D são um “pólo”. Ora, pelos vistos, no jogo “pedra, papel ou tesoura” da esquerda portuguesa, o “pólo” ganha ao partido. Daniel Oliveira embrulha Rui Tavares. Significa, então, que os 65 em 3D não vão de certeza fundar um partido, em nenhum momento da História de Portugal? Eehrrr… não é bem assim, até porque existe o problema de listas de cidadãos independentes não poderem concorrer a eleições europeias nem legislativas. A solução encontrada por Daniel Oliveira, que em tempos já defendera no Expresso a necessidade de um “novo sujeito político”, tivesse ele “a forma de movimento, frente, coligação ou qualquer outra coisa” (o “qualquer outra coisa” era o “pólo”), é esta: “Começamos pela vontade e pelo conteúdo, depois iremos à forma.”

Começar pela vontade e pelo conteúdo e depois ir à forma poderia perfeitamente ser o lema inscrito no brasão da esquerda portuguesa. Porque eles querem todos o mesmo, mas não querem todos o mesmo da mesma maneira. Daí que aquilo que se está a passar neste momento seja a esquerda matrioska elevada à sua máxima potência – uma boneca russa tamanho XL, cheia de outras bonequinhas no seu interior. Embora vistas de fora pareçam todas iguais, cada uma delas preza muito a sua identidade: os 65 em 3D gostariam de englobar o LIVRE, a Renovação Comunista e o Bloco de Esquerda, que por sua vez engloba, como se sabe, o PSR, a UDP, e a Política XXI, que por sua vez engloba dissidentes da Plataforma de Esquerda e do MDP/CDE. É uma canseira de gente para convergir.

Não há boas notícias no meio disto? Há, claro. “Manifesto 3D” é um nome perfeito: tal como os óculos 3D do cinema, o manifesto 3D filtra a realidade, esbate os contrastes e simula uma profundidade que não existe. Com os óculos postos, pode ser divertido. Mas quem insistir em ver as coisas como elas são lá terá de ver a nossa esquerda como ela é: bastante colorida mas completamente desfocada.


IN "PÚBLICO"
19/12/13

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