24/12/2013

JOÃO ALMEIDA MOREIRA

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O ovo e a galinha 
da corrupção

No final do sorteio dos grupos do Mundial de futebol, na baiana Costa do Sauípe, a hora e meia de Salvador, o autocarro da FIFA que transportava de regresso aos seus hotéis na capital estadual centenas de jornalistas que cobriram o evento, ficou 15 minutos num impasse. Ao contrário do local estabelecido para terminar o percurso, era mais cómodo para a maioria dos repórteres que o autocarro parasse noutro lado. A voluntária da FIFA dialogou então uns minutos com o motorista e voltou com um negócio: o autocarro finalizaria o trajeto no lugar preferido mediante uma “contribuição voluntária” ao motorista.

Esgotados, após dois dias de trabalho sob sol abrasador e já noite alta, ainda se ouviram uns “I can’t believe it”, “incroyable” ou “no hay derecho” - além de uns “gringos, vão-se acostumando com o Brasil...”. Mas a “contribuição voluntária” lá saiu. E o autocarro também.

E porque decidiu a FIFA organizar o sorteio a hora e meia da capital baiana, numa luxuosa estância balnear com reduzida capacidade hoteleira em vez de em Salvador? Em primeiro lugar porque ali, a hora e meia da capital, seria mais difícil chegarem protestos como aqueles de Junho e, em segundo, porque ao estado da Bahia interessava mostrar o seu lado luxuoso e omitir as favelas em torno do belo centro histórico de Salvador.

E porque um evento que custou nove milhões de euros e foi visto por quase 500 milhões de telespectadores foi na Bahia e não no eixo São Paulo-Rio? Porque a FIFA e o comité organizador local deviam um favor ao estado nordestino: o Estádio do Morumbi, propriedade do São Paulo FC e inicialmente escolhido para a abertura do Mundial, acabou fora da Copa por causa de uma guerra em 2009 entre Ricardo Teixeira, então presidente da CBF e hoje fugido em Miami, e o presidente são-paulino. A Bahia ofereceu-se então para sediar a abertura e ganhou-a.

Só que, vetado o Morumbi, o à época presidente Lula, adepto do também paulistano Corinthians, viu aí a oportunidade de erguer um estádio de raiz para o seu clube, financiado pelo estatal BNDES, ou seja, em última análise pelos contribuintes. A Bahia voltou a perder a abertura para São Paulo, mas ganhou o sorteio de grupos em Salvador. Ou, melhor, no Sauípe.

O novo estádio da abertura, construído a quilómetros do quase pronto Morumbi, começou então a ser erguido em tempo recorde – noite e dia e muitas vezes sem folgas para os operários durante um mês - para ficar pronto em Dezembro de 2013. Mas há duas semanas, num acidente numa plataforma morreram dois operários. Agora, segundo as estimativas mais otimistas, o estádio fica pronto em Abril, a dois apertados meses do Mundial que vai inaugurar.

Aldo Rebelo, ministro do desporto, deixou uma mensagem tranquilizadora sobre o atraso: “Nunca vi uma noiva chegar a horas ao casamento”. A seu lado, Sepp Blatter, o pouco recomendável presidente da FIFA, deixou mensagem ainda mais tranquilizadora: “O que há a fazer? Pedir a Deus e a Alá que não haja mais incidentes”.

Com este e outros problemas, 85% dos custos do Mundial, que supostamente seria assegurado por privados, vai ser pago pelo governo com o tal dinheiro que manifestantes de Junho preferiam ver aplicado em saúde, educação e transportes.

O sorteio propriamente dito, com um arranjinho que favoreceu a França, país do número dois da FIFA Jerôme Valcke, e com mudanças de horário dos jogos à última hora para agradar aos anunciantes da TV e não para minimizar os riscos dos atletas de atuar sob 35 graus às 13 horas locais, também esteve ao nível das trapalhadas nos estádios.

Com gente assim ao volante do Mundial, quem pode apontar o dedo à pequena corrupção do mal pago motorista de autocarro?

IN "DINHEIRO VIVO"
18/12/13

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