04/10/2013

ANA CRISTINA CORREIA GIL

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Quarenta horas 


São seis da manhã. O despertador toca impiedoso, ignorando ser ainda noite lá fora. Amélia levanta-se sonolenta e acorda os filhos. Até chegar ao serviço, tem de os preparar para sair, levá-los às respetivas escolas, apanhar a camioneta e depois o metro, que a essa hora vai sempre a abarrotar.

Na repartição de finanças, o relógio de ponto não falha na sua precisão eletrónica, e cada segundo de atraso é registado com minúcia. Já sentada no seu posto, Amélia vê desfilarem à sua frente todo o tipo de pessoas: simpáticas, carrancudas, interrogativas, impacientes, desesperadas. Na maior parte dos casos, todas se queixam do tempo que demoram a ser atendidas, da burocracia a que são sujeitas, do roubo que são os impostos. Amélia até pensa como elas, mas não o pode dizer. Fecha-se em copas e tenta fazer o que pode, mas nada parece ajudar: o computador teima em demorar eternidades a abrir os programas de que necessita, cada folha mandada imprimir é arrancada a ferros da máquina infernal, os utentes que esperam começam a reclamar em massa… e a hora de almoço que não chega.

Isto num dia bom, porque há alturas em que lá aparecem aqueles casos bicudos a que Amélia, por muito que queira, não sabe dar resposta. É que, à conta da crise, ela não tem tido formação que lhe troque por miúdos a legislação que está sempre a mudar. Por brio profissional, e sabendo-se por conta própria, lá vai folheando os manuais em alguns serões em que os miúdos se deitam mais cedo e ela não adormece em frente à televisão. Mesmo assim, lá fica de vez em quando encavacada ao balcão, valendo-lhe a experiência de uma colega mais velha.

É por isso que Amélia sabe que mais uma hora de trabalho por dia não vai significar mais eficiência. Ela já faz o que pode, atura quem é mal-educado, socorre o desesperado, explica tudo tim-tim por tim-tim a quem parece perdido. A partir de agora sairá de casa ainda mais de madrugada, os filhos terão de ir para a escola ainda mais cedo, ficando no recreio ao deus-dará. Ficar mais sessenta minutos por dia no serviço só vai deixá-la mais extenuada, fazê-la ir buscar os filhos já de noite no inverno, chegar a casa a correr e aproveitar a alta velocidade o tempo que lhe resta até se deitar: orientar-lhes os tpc, dar-lhes banho, fazer o jantar, preparar as lancheiras para o dia seguinte, arrumar a cozinha, ler-lhes uma história, passar a ferro a roupa para o dia seguinte, lavar roupa, estendê-la… Em dias assim não há espaço para o lazer, para um pouco de descanso, para retomar a energia que precisa para continuar. Descansar só mesmo nas poucas horas em que se der ao luxo de dormir.

Amélia sabe que as quarenta horas que vai passar agora ao balcão não vão resultar em mais produtividade. Vão deixá-la mais exausta, mais desmotivada, menos reconhecida no seu emprego. Dessem-lhe mais condições de trabalho e de vida e ela faria muito mais em muito menos tempo. Nos últimos anos, Amélia tem trabalhado cada vez mais e tem recebido cada vez menos. É por isso que vai votar amanhã. É o único momento em que pode dizer de sua justiça.

IN "AÇORIANO ORIENTAL"
30/09/13

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