09/09/2013

FERNANDO SANTOS

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As castanhas à porta da guerra

"Cheguei à guerra eram sete horas da manhã. Estava a guerra ainda fechada. E estava uma mulherzinha a vender castanhas à porta da guerra. E eu perguntei: Minha senhora, faz favor, pode dizer-me se aqui é que é a guerra de 1908? Não, é mais acima, aqui é a guerra de 1906. Subi dois andares, cheguei mais acima, estavam a abrir as portas onduladas da guerra já eram 9 e tal". 
Fez rir gerações esta parte de um "sketch" famosíssimo, interpretado por Raul Solnado, nome maior do teatro português. Hoje, adaptadas as datas, caricatura bem o barril de pólvora instalado no Médio Oriente - e o cinismo da comunidade internacional.

Esquecido dos resultados desastrados da guerra no Afeganistão, no Iraque e na Líbia, um conjunto de românticos exultou há dois anos com o surgimento de movimentos populares aparentemente adeptos do derrube de um naipe de regimes ditatoriais, substituindo-os por democracias. E, afinal, a Primavera Árabe rapidamente se transformou num movimento cascata, travestido, de substituição de dirigentes facínoras por outros facínoras.

Se os sinais de extremismo saídos do Egito são eloquentes, a guerra civil instaurada na Síria aponta ao limiar do erro de análise. E a um lamentável aproveitamento (outra vez) das grandes potências, exercitando-se o cúmulo do cinismo.

Dois milhões de deslocados e 110 mil mortos depois, os pretensos polícias do Mundo - Estados Unidos, França, Inglaterra e mais uns acolitozitos - espreitaram em 1300 assassinatos por armas químicas a hipótese de se fazerem notar moralistas, escondendo no conceito o despique geoestratégico e as altas negociatas, do armamento ao gás e ao petróleo. 

O anúncio de um ataque ao arsenal do ditador Bashar al-Assad está por um fio. Barack Obama, o Nobel da Paz, deverá receber luz verde do Congresso americano na segunda--feira e a partir daí seguir-se-á o fogo à peça - o veto também geoestratégico da Rússia e da China no Conselho de Segurança da ONU vale zero. Um cenário repetido.

Não nos enganemos: a escalada armamentista no conflito sírio só agravará fúrias do enorme vespeiro em que está transformado o Médio Oriente. A passagem da ideia de uma intervenção destinada a repor patamares mínimos de dignidade da condição humana naquela região do Mundo é falaciosa. E tão perigosa quanto a tese da necessidade de dar uma lição a um regime repugnante - mas, apesar de tudo, sem cercear o convívio entre comunidades religiosas diversas. E todos sabem estar a Oposição fragmentada, constituída por extremistas de sinal contrário e grupos de bandoleiros e terroristas de quilate semelhante - ou pior. 

Perante o comportamento dos senhores do Mundo, é difícil compreender como ainda nos admiramos com o exército de hipócritas mais próximos das nossas vidas - estejam eles nos locais de trabalho ou no bairro em que habitamos.

A Barack Obama, François Hollande, David Cameron e acólitos devia ser passado o som de Solnado sobre a guerra de 1908. Seria difícil, mas talvez o riso os desarmasse da ganância.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
07/09/13

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