23/01/2013

EKER SOMMER

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Egocentrismos 

Os egocêntricos são mesmo assim: intragáveis

Noite escura sem viva alma. Um homem para o carro novo e sai apressado rumo a uma farmácia. Olha em todas as direções e segue até desaparecer de vista. Um transeunte solitário, aproveitando a oportunidade, introduz-se na viatura mal estacionada e arranca sem olhar para trás. O outro regressa e dá pelo furto. Traz consigo um saco que não tinha antes. Olha para um lado, para outro, hesita, corre, volta atrás... Nota-se-lhe o desespero perante a constatação de que fora assaltado. Subitamente, surge outro assaltante que, tirando partido da atrapalhação da vítima, deita mão ao saco que esta carrega e põe-se em fuga. É o cúmulo dos cúmulos! 

Um furto e um roubo em menos de 15 minutos são demasiado azar para um homem só, ainda mais se for numa noite escura sem viva alma. A vítima apresenta de imediato queixa na polícia sobre o sucedido e, para pasmo do jornalista que o quis entrevistar, confessa que o duplo assalto de que foi alvo fora, por sua vez, resultado de outros dois que ele próprio perpetrara antes. O furto do carro no dia anterior; o roubo do dinheiro, que estava dentro do tal saco, há poucas horas, enquanto deixara o carro à frente da farmácia, local do seu crime. O jornalista parece não compreender a revolta do assaltante queixoso. Afinal, ele também era um ladrão e, lá diz a sabedoria popular, ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão. O entrevistado, no entanto, não pensava assim. O carro e o dinheiro pertenciam-lhe porque eram fruto do seu "trabalho", dizia ele. E ponto final. Não havia quem o convencesse do contrário e, por causa disso, foi preso no mesmo instante em que participava a queixa ou não estivesse no mesmo posto de polícia o proprietário da farmácia assaltada, apresentando, também ele, queixa, desta feita contra o indignado larápio azarado.

O vídeo do episódio, que supostamente foi captado por uma câmara de segurança em São Paulo, circula desde o final do ano passado no youtube, onde já conta com cerca de um milhão de visualizações e um sem número de comentários. Alguns acreditam que o caso é real, outros asseguram que é mera ficção, todos, sem exceção, têm algo a dizer sobre o caricato da situação que, para a maioria dos brasileiros, ilustra o grau de violência que se instaurou na cidade paulista. Eu, por mim, e se calhar por não viver ainda no meio da violência, confesso que o instantâneo, seja verdadeiro, seja falso, se me assemelhou a uma espécie de parábola acerca da estupidez humana. E digo estupidez porque, para mim, não há maior estupidez do que aquela que nos impede de olhar para além do nosso umbigo e nos faz incapazes de perceber que não somos o centro do mundo. O ladrão, tão convencido estava da sua verdade, que não hesitou em apresentar queixa à polícia, julgando-se lesado e exigindo a justiça de que antes privara as suas vítimas. Melhor exemplo de egocentrismo não há, acho eu.

Não sou mulher de moralismos ocos, longe disso, nem de dar lições de moral a ninguém. Mas é um facto que há histórias que obrigam a nos demorarmos nelas por simbolizarem, genialmente, o que muitas vezes é difícil de verbalizar de forma objetiva. Há muito tempo, talvez há tempo de mais, venho dando conta da estupidez humana que grassa por aí e que se corporiza no egocentrismo de muita gente que se acha o máximo e que, à conta disso, é incapaz de ouvir o que os outros têm para dizer. É claro que, embora o mal seja de todo o lado, aqui, na Madeira, se evidencia mais, pois estamos numa terra pequena, onde a maledicência e a rudeza de trato são, infelizmente, prática habitual. As discussões de ideias não existem, porque, assim que alguém se lembra de defender uma posição diferente do que se considera assente, cai o Carmo e a Trindade e é o Deus nos acuda. Ou vamos na onda em que os egocêntricos vão ou estamos lixados. E o pior é que, quem não gosta de confusões nem de brejeirice, não tem outra solução senão a de se remeter ao silêncio numa sensatez que é interpretada pelos tais que sabem tudo como um sinal de derrota e de reconhecimento de que eles têm sempre razão. Os egocêntricos são mesmo assim: intragáveis. 
Afirmam-se detentores da verdade e, fazendo jus à evidência de ser a ignorância atrevida, dizem disparates infundados, envergonhando quem até sabe o que diz. São maus, porque, centrados nos seus umbigos, são insensíveis às razões dos outros, não hesitando em deitar mão ao insulto na falta de argumento melhor. São mestres da manipulação e da distorção dos factos, tudo em proveito próprio ou, se preferirmos, em proveito de uma verdade, a deles, que não admite contestação nem alternativa.
De volta ao vídeo do youtube, é óbvio que se tratou de uma divertida peça de ficção. 

Se dúvidas houvesse do contrário, bastaria atentar no seu desfecho, bem ao jeito dos contos de encantar, em que egocêntrico ladrão tem o castigo que merece. Na vida real já não é assim. O bem está longe de vencer o mal. Falta-lhe, diga-se em abono da verdade, a descomunal dose de pachorra que é necessária para convencer, se tal é sequer possível, um egocêntrico de que o mundo está feito à medida de todas as opiniões. A sua, por muito que lhe custe, é só mais uma.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
16/01/13

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