28/11/2012

CARLA COOK

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Varandas de Pilatos

O que se segue é uma história verídica. Não revelo nomes, pelo que não cometo indiscrições. Mas não podia deixar de a contar, já que uma das principais razões pelas quais o mundo não avança é a tendência que todos temos de olhar apenas para os nossos problemas.

Uma jovem ficou com uma equimose no olho em resultado de uma briga com o namorado. Não se pode dizer que foi surpreendente; afinal, o rapaz mudava de temperamento com frequência e ora era muito romântico ora se exaltava ao ponto de pontapés. De qualquer forma, o ponto desta história não é julgar este relacionamento; para isso, não faltam alguns teorizadores da violência que até garantem transformar um abusador num companheiro em 15 epifânicas sessões de mudança comportamental.

O ponto desta história é que, no dia do “olho negro”, esta jovem disse “basta” e foi ao hospital. Teve sorte – ou não – e “apanhou” a sua médica habitual, a quem contou o sucedido. Quando uma vítima de violência decide contar o que se passa podemos não só admitir que os factos já acontecem há algum tempo como também temos de ter em conta que foi preciso ultrapassar muitos sentimentos íntimos para fazer a revelação, entre eles medo e vergonha. É à conta do pudor que se sente em contar coisas tão humilhantes e do receio de que possa acontecer algo pior caso o abusador venha a saber da revelação que a indecisão em contar se mantém por tanto tempo. É neste silêncio que confiam todos os que violentam outras pessoas. É neste mesmo tipo de silêncio que confiam os que abusam de crianças (mas esses inventam ainda a desculpa adicional da “imaginação influenciável do menor”, muito na moda nos tribunais e com uma espantosa aceitação por parte dos decisores).
Não é preciso um doutoramento em Psicologia para chegar à conclusão de que a jovem necessitou de muita força de vontade para falar com a sua médica nesse dia. A Sra Dra, porém, respondeu que tudo o que diziam entre aquelas quatro paredes estava abrangido pelo segredo médico e que não se metia em confusões de namorados, pelo que não podia revelar nada do que lhe estava a ser confiado: “Mas desejo que as coisas se resolvam pelo melhor!” Na cabeça da jovem, a conversa das quatro paredes recordou-lhe um episódio em que também o namorado lhe tinha dito, numa das suas fúrias, “Tudo o que fazemos aqui ninguém sabe lá fora!” e a Sra Dra pareceu-lhe tão ambígua e, de certo modo, tão violenta como ele.

Vejamos: se a menina apenas quisesse falar sobre o pesado assunto mas pedisse à médica que não revelasse nada judicialmente (o que, nestes casos, acontece às vezes, embora isso vos possa parecer paradoxal e até pudesse dividir a médica entre estar ao corrente de um crime público e ter um pedido de segredo) eu entendia perfeitamente que a Sra Dra não falasse, por respeito ao pedido. Mas, neste caso, a menina pediu socorro, pediu que fosse relatado o acto. É um chocante conveniente lavar de mãos desta médica, que, ademais, não põe em causa a veracidade do testemunho.

O que eu espero, por mero acaso, é que a Sra Dra esteja agora a ler o jornal, talvez à mesa do pequeno almoço, confortavelmente. E agora, páre, se faz favor. Repare nos seus filhos, moldados pelas suas acções. Olhe para a sua filha adolescente. Imagine-a com um olho negro. E agora, levante-se, vá para o Hospital, vista a bata e faça a sua vida… como habitualmente. Lave as mãos como se nada fosse.

IN "AÇORIANO ORIENTAL"
26/11/12

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