06/10/2012

JOSCHKA FISCHER




Europa: o desafio da crise 

Há cerca de 2500 anos, o filósofo grego Heraclito concluiu que a guerra é o pai de todas as coisas. Poderia ter acrescentado que a crise é a mãe.
Felizmente, a guerra entre potências mundiais deixou de ser uma opção realista, devido à ameaça de destruição nuclear mútua. Mas as grandes crises internacionais, como a actual crise financeira mundial, permanecem – o que poderá não ser totalmente negativo.

Tal como na guerra, as crises alteram fundamentalmente o statu quo, o que significa que criam uma oportunidade – sem a força destrutiva da guerra – de mudança que, em tempos normais, é quase impossível. Para se superar uma crise é necessário fazer coisas que anteriormente eram dificilmente concebíveis, para não dizer inviáveis.

Assim aconteceu com a União Europeia nos últimos três anos, uma vez que a crise financeira global não só abalou a Europa até aos alicerces, como também assumiu proporções que ameaçam a sua própria existência.

Em comparação com o início de 2009, estamos agora perante uma UE significativamente diferente – que ficou dividida entre uma vanguarda de Estados-membros que formam a zona euro e uma retaguarda, composta por Estados-membros que permanecem fora dela. Esta situação não resulta de más intenções, mas sim da pressão da crise. Para que o euro possa sobreviver, os membros da zona euro devem agir, enquanto os outros membros da UE com vários níveis de compromisso face à integração europeia permanecem à margem.

Na verdade, já foram abolidos quase todos os tabus existentes após a eclosão da crise. A maioria foi criada por iniciativa alemã, mas agora foram retirados com o apoio activo do Governo alemão.

É uma lista impressionante: a responsabilidade nacional em matéria de resgates bancários, o carácter sagrado da interdição pelo Tratado da UE de resgates dos governos, a governação económica europeia, a proibição de financiamento directo dos Estados pelo Banco Central Europeu, a recusa em apoiar a mutualização de dívidas e, finalmente, a transformação do BCE, que deixou de ser uma cópia do antigo Bundesbank, tornando-se num Banco Europeu de Reserva Federal com base no modelo anglo-saxónico.

Mantém-se a rejeição dos eurobonds, mas esta acabará igualmente por desaparecer. A única questão é saber se este tabu irá cair antes ou depois das eleições legislativas alemãs do próximo ano. A resposta depende do rumo futuro da crise.

A Alemanha, a maior economia da Europa, desempenha um papel estranho, por vezes bizarro, na crise. Nunca, desde a fundação da República Federal, em 1949, o país esteve tão forte. Tornou-se a principal potência da UE, mas não quer nem é capaz de assumir a liderança.

Precisamente por essa razão, muitas das mudanças na Europa tiveram lugar apesar da oposição alemã. Por fim, o Governo alemão teve de recorrer à arte da reviravolta política e, como resultado, a Alemanha, apesar de economicamente forte, ficou mais fraca a nível institucional – uma dinâmica que pode ser exemplificada pela influência reduzida que tem no Conselho do BCE.

O antigo Bundesbank foi sepultado no dia 6 de Setembro, quando o BCE adoptou o programa de "transacções monetárias definitivas" - compra ilimitada de dívida soberana dos países em dificuldades da zona euro - com apenas um voto contra, o de Jens Weidmann, presidente do Bundesbank. E o coveiro não foi o presidente do BCE, Mario Draghi, mas sim a chanceler alemã, Angela Merkel.

O Bundesbank não foi vítima de uma conspiração sinistra dos países do Sul da Europa, o que aconteceu foi que se tornou a si próprio irrelevante. Se tivesse conseguido levar a melhor, a zona euro já não existiria. Colocar a ideologia acima do pragmatismo constitui uma fórmula para o fracasso em qualquer crise.

Actualmente, a zona euro está no limiar de uma união bancária, seguida de uma união fiscal. Mas, mesmo com apenas uma união bancária, a pressão a favor de uma união política irá aumentar.

Com 27 membros (28 com a perspectiva próxima de integração da Croácia), será impossível fazer alterações ao Tratado da UE, não só porque o Reino Unido continua resistente a uma maior integração europeia, mas também porque seria necessário realizar referendos em muitos Estados-membros. Estes plebiscitos iriam transformar-se num ajuste de contas para os governos nacionais em termos das suas políticas face à crise, o que nenhum Governo sensato desejaria.Isto significa que, durante algum tempo, serão necessários acordos intergovernamentais e que a zona euro irá evoluir para um federalismo intergovernamental. A situação promete ser empolgante, uma vez que irá oferecer possibilidades completamente inesperadas de integração política.

No fim, o ex-Presidente francês Nicolas Sarkozy prevaleceu, porque a zona euro é actualmente liderada por um Governo económico de facto, que inclui chefes de Estado e de Governo de países-membros (e respectivos ministros das Finanças). Os federalistas europeus deviam acolher positivamente esta situação, porque quanto mais depressa estes chefes de Estado e governos se tornarem num Governo da zona euro como um todo, mais rapidamente o seu actual duplo papel de poder executivo e legislativo da UE se tornará obsoleto.

O Parlamento Europeu não será capaz de preencher o vazio daí resultante, uma vez que não possui soberania fiscal. Esta pertence ainda aos parlamentos nacionais, que a irão manter indefinidamente. Apenas os parlamentos nacionais podem preencher o vazio e necessitam de uma plataforma comum na zona euro – uma espécie de "Euro Câmara" – através da qual possam controlar a governação económica europeia.

Os federalistas no Parlamento Europeu e, de um modo geral, em Bruxelas não deverão sentir-se ameaçados. Pelo contrário, deverão reconhecer e usar esta oportunidade única. Os membros dos parlamentos nacionais e os membros do Parlamento Europeu deveriam reunir rapidamente e clarificar a sua relação. A médio prazo, poderia surgir um Parlamento Europeu com duas câmaras.

Esta crise oferece à Europa uma excelente oportunidade. Definiu o programa para os próximos anos: união bancária, união fiscal e união política. Fica a faltar uma estratégia económica de crescimento para os países afectados pela crise, mas, dada a agitação crescente nos países do Sul da Europa, torna-se inevitável uma estratégia desta natureza. Os europeus têm razões para se sentirem optimistas se reconhecerem a oportunidade que a sua crise criou e se agirem com ousadia e determinação para aproveitá-la.

Líder do Partido Verde, foi ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e vice-chanceler


IN "PÚBLICO"
03/10/12

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