09/10/2012

EKER SOMMER



Ineficácias 
Perdeu-se o norte e quase tudo, até o feriado do 5 de Outubro 

Não gosto de novelas. Nem de ficção nem da vida real. Irrita-me o drama arrastado, o labirinto sem saída, a lágrima sempre prestes a cair, a intriga previsível, a solução adiada. 

Prefiro a ação, o problema resolvido na hora, o touro agarrado pelos cornos. Talvez por isso há dias fiquei surpreendida comigo mesma ao dar por mim agarrada ao pequeno ecrã, completamente entregue à trama da célebre novela inspirada no romance de Jorge Amado, Gabriela. E isso não pela beleza estonteante da protagonista nem pela história dos seus amores com o patrão, mas sim por uma greve de quengas. Sim, isso mesmo, uma greve de quengas ou, se preferirmos num português europeu menos prosaico, de prostitutas. 

A ideia não lembra ao diabo mas está ao nível da genialidade do autor do enredo que, a propósito de uma procissão para fazer chuva em tempo de seca, põe a seco os imponentes coronéis do sítio para que estes aceitem que a Virgem saía à rua com um manto bordado por mulheres da vida e que estas, as ditas quengas, saiam à rua também, acompanhando a Santa e as castas esposas daqueles. 

Tudo junto em romaria, o bem e o mal, a virtude e o pecado, tudo em procissão para que o céu se compadeça, abra as comportas e regue o cacau, o ouro doce em que assenta o poder dos senhores da terra. Quem viu, sabe como foi. As quengas queriam ir, as senhoras dos coronéis não queriam que as quengas fossem. Os coronéis, esses só queriam chuva, pelo que optaram por ficar fora do barulho. 

O galinheiro que se entendesse até porque em guerra de mulheres, ainda mais se entre virtuosas e pecadoras for, não há homem que meta a colher. Nenhuma das beligerantes vergou. Nem a Zarolha, a quenga que em má hora se lembrara de bordar o véu e a quem até já fora prometida uma valente surra pela ousadia. O impasse instalou-se e, enquanto não se resolvesse, não havia procissão nem chuva para ninguém. O coronel dos coronéis compreendeu-o e, como estratega nato que era, percebeu como resolver o imbróglio. Nada mais, nada menos que com uma greve ao sexo. A ideia, com efeito, foi dele e contra os dele, mas até hoje ninguém o soube, já que a política é mesmo assim, um mar de subtis traições onde, pela calada, se urdem acordos e a culpa morre sempre solteira. 

Convocada, pois, a greve, foi só pô-la em prática. Para total e absoluto desespero dos coronéis, verdadeiros garanhões no cio subitamente privados de dar prova da sua macheza ou, no português de Portugal, da sua virilidade. Isto, claro está, porque não se esqueça que, no português do Brasil, as safadezas de cama estão sempre interditas aos santuários das esposas, ventres talhados apenas para conceber futuras gerações de coronéis. E ponto final. 

Resta dizer que a abstinência do corpo pôde mais do que o desejo de chuva, razão pela qual não houve coronel que, solicitado a pronunciar-se sobre a participação das quengas na procissão, não votasse a favor destas e contra a mãe dos seus filhos. E, assim, quem antes lavara as mãos como Pilatos agora metia as mesmas mãos à obra e resolvia a procissão que não tardou a sair com quengas de um lado e senhoras bem casadas do outro e ainda, segundo o que parece, com o assentimento divino que fez cair dos céus a tão cobiçada água, resolvendo a Providência o que fora chamada a resolver. O problema extinguira-se. Eficazmente e para gáudio dos envolvidos.

Confesso que é disto que eu gosto, de eficácia. Mesmo que seja a eficácia de uma greve de quengas. Não gosto do faz de conta e, muito menos, de ilusões. Não gosto de dourar a pílula nem de soluções de 360 graus que deixam tudo exatamente como estava ou pior. Por isso, porque gosto de eficácia e de problemas resolvidos com inteligência, ando fula com a ineficácia deste país que por acaso só tem coronéis para o que não interessa. Nada de novo, é certo, mas nem por isso menos revoltante.
Na verdade, estou cansada do crescente desgoverno do governo, da alienação de alguns governantes que ainda acreditam em cabalas contra si e os seus, da guerrilha oca e oportunista da oposição e até de manifestações populares que de nada adiantam porque não há nada para adiantar. 

Saiam à rua dez, cem ou milhares o resultado é nulo. Simplesmente porque toda a resolução é ineficaz neste Portugal feito à medida da troika. Perdeu-se o norte e quase tudo, até o feriado do 5 de outubro. Restam-nos hoje, como dizia o poeta, a saudade e o mar universal. E, porque não?, acrescento eu, Gabriela, o espaço da ficção onde ainda há homens que tomam decisões eficazes. E resolvem problemas.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
05/10/12

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