08/10/2012

ALBERTO GONÇALVES





 A tragédia e as farsas

Na passada quarta-feira, o ministro das Finanças justificou a fama de liberal à portuguesa e divulgou o conjunto mais socialista de medidas desde 1975. Em vez das mudanças na taxa social única, que favoreciam os empregadores em detrimento dos assalariados, ganhámos umas habilidades no IRS que prejudicam os assalariados a favor do Estado. Sobretudo, as medidas prejudicam os assalariados que pagam impostos, conhecidos consoante a perspectiva como a classe média ou os "ricos", doravante dobrada e redobradamente taxados no património e no que calha. 

Em simultâneo, Vítor Gaspar admitiu o que já era uma evidência: o Governo não quer, não pode ou não sabe cortar na despesa, pelo que o combate ao défice continuará a travar-se quase exclusivamente através da receita. O dr. Gaspar não precisou de admitir que, face às promessas de campanha e às carências do país, o Governo é um logro. Corre-se com ele?

Sugiro calma. A menos que se seja entusiasta de golpes militares e das ditaduras subsequentes, enxotar o Governo implica colocar alguém, ou alguma coisa, no seu lugar, em princípio um partido ou uma associação de partidos designados mediante eleições. Mas quais?

Basta olhar a oposição e concluir, sem espanto: a esquerda explícita em geral consegue mostrar-se capaz de fazer bastante pior do que a esquerda implícita que hoje manda nisto. O PS, escondido atrás de um "sentido de responsabilidade" que nunca se lhe adivinhou, evita as maçadas do poder e sugere a repetição das exactas loucuras que nos arruinaram. Os partidos comunistas insurgem-se contra os impostos e o "pacto de agressão" enquanto defendem um Estado totalitário, falido e pária. Para completar o quadro, um divertido Congresso das Alternativas irrompeu a sugerir que a alternativa à penúria é o carnaval.

A verdade, escassamente lembrada, é que entre todos os críticos do Governo pouquíssimos estão preparados para assumir as críticas até às últimas consequências e lidar com um desagradável facto: ou sobem os impostos ou descem as prestações sociais e os empregos na administração pública. Dito de maneira diferente: ou há remendos ou há reformas. Ou ainda: ou há austeridade injusta ou há austeridade necessária. Mal por mal, eu preferiria a segunda hipótese. O Governo, inepto para abolir municípios, uma mera estação televisiva ou fundações e similares, prefere obviamente a primeira. E eis a escolha que temos. O resto, ou as exigências de "renegociação" (leia-se de anulação) da dívida, os gritinhos que reclamam a expulsão da troika e os palpites do dr. Soares, que anda por aí a propor a impressão de notas de banco, naturalmente não é para levar a sério. 

Séria é a trapalhada a que chegamos, que uns abdicaram de resolver e os outros tentam empenhadamente agravar. Os cartazes que o PCP espalhou nas ruas pedem o fim do desastre. Supõe-se que para marcar a data do velório.

Segunda-feira, 1 de Outubro

O hino, a bandeira e o vereador
Reunidos em congresso no fim-de-semana, os autarcas queixaram-se de ser alvo de uma "campanha" que visa criar "uma imagem negativa" do poder local. A campanha existe, mas não organizada por quem os autarcas sugerem, isto é, o Governo. A imagem negativa do municipalismo é pública (nos dois sentidos) e a sua congeminação está inteirinha a cargo dos próprios autarcas.
Que se saiba, são eles que contraem dívidas extravagantes, cozinham arranjinhos, servem compinchas, iniciam obras perpétuas, patrocinam "arte" e rotundas, distribuem sacos azuis, arrasam património, dormem com os "agentes" da bola, desfeiam as cidades, negoceiam "cunhas", plantam empresas municipais, passeiam prepotência, inauguram "multiusos" sem uso nenhum, atentam contra a língua portuguesa que enchem de "paulatinamentes" e "alavancagens", prestigiam "certames" engendrados por amigos, mandam os motoristas catar a descendência à escola e, pelo menos num caso, recorrem ao mesmo motorista e ao mesmo transporte financiados por dinheiro alheio para atravessar metade do território pátrio e comparecer, todas as semanas, num debate televisivo (sobre futebol, claro).
A propósito: em funções ou fora delas, um vereador a desfilar no banco traseiro de um automóvel de alta cilindrada pago pelo contribuinte é dos mais fiéis retratos da nossa desgraça. Ali, escolhido pela casta partidária e eleito numa lista de anónimos, não vai apenas uma irrelevância convencida do contrário, nem somente um símbolo do regime, nem sequer uma metástase da triste democracia que jovialmente erguemos: ali vai o país. 

Terça-feira, 2 de Outubro 

Um serão da província
Prostrado devido a uma cefaleia, apanhei inadvertidamente com um programa da RTP chamado Cinco para a Meia-Noite. No referido programa, vi: uma entrevista a Vítor Espadinha, na qual o estimado cançonetista confessou ter gasto em "gajas" (sic) o dinheiro que ganhou ao longo da vida; uma entrevista a Vitorino, na qual o cançonetista falou do seu ódio à língua inglesa, à bandeira inglesa e ao mundo anglo-saxónico em geral (Cuba é que é giro, não é? E a Bolívia? Falem-lhe na Bolívia que o homem derrete-se), justificou como pôde a participação num anúncio publicitário em que aparece a cantar em inglês e explicou que só não participara num protesto dos cidadãos incapacitados junto à AR por causa daquele exacto compromisso televisivo (é assim: as obrigações da autopromoção sobrepõem-se a uns aleijadinhos); um apresentador com tanto talento para a função quanto eu para reparar motores de seis cilindros.
Principalmente vi o apresentador conduzir um inquérito de rua, talvez pensado para fins humorísticos. Filmado na Baixa lisboeta, o inquérito sondava transeuntes sobre a frase do ministro Miguel Macedo alusiva às cigarras e às formigas e terminava com um transeunte peculiar, um demente ou um bêbado que não dizia coisa com coisa mas que se afirmava orgulhosamente "do Norte". Além de troçar do infeliz, o apresentador repetiu uma data de vezes, em tom que alguns julgarão irónico: "Não se nota nada que é do Norte«."
Ora bem. Embora nado e criado no alegado "Norte", onde de resto sempre vivi, nunca empunhei a bandeira da região, nunca partilhei o paternalismo que publicita a "hospitalidade" das "gentes" e nunca percebi as generalizações que tratam o "Norte" enquanto um congresso de virtudes. Se calhar por isso, também não aprecio as generalizações de sentido contrário, as que, em tom sério ou cómico, reduzem alguns milhões de pessoas a variações do tipo rústico. Ou, pelos vistos, do bêbado. Ou do demente.
É até arrogante esclarecer que o apresentador do Cinco para a Meia-Noite possui todo o direito de insultar os judeus, os árabes, os pretos, os brancos, os finlandeses, os anões e, lá está, o que quer que sejam os "nortenhos". Todo. Só me aborrece que pratique o exercício na RTP, que os nortenhos pagam e que este particular nortenho preferia não pagar. Além da Taxa de Contribuição ("contribuição" é maneira de dizer) Audiovisual, que ronda os 150 milhões, a estação ainda recebeu em 2012 uma "indemnização compensatória" de 90 milhões. Entre avanços e recuos, o Governo não extingue esta brincadeira, o líder de um dos partidos no Governo defende a brincadeira enquanto se queixa dos impostos, a oposição toma a brincadeira a título de serviço público e, goste ou não, o público financia a brincadeira e os palermas que nela florescem. 

Quinta-feira, 4 de Outubro

Olha quem fala
O New York Times considerou "pouco útil" o primeiro de três debates televisivos entre Barack Obama e Mitt Romney. De facto, o encontro não teve utilidade nenhuma para quem queria ver o Presidente em funções humilhar o candidato. Pelo menos desta vez, a coisa correu mal: a reverenciada retórica do democrata, excelente em trivialidades vagas, revelou-se quase cómica no confronto com a realidade de quatro anos tristes. E depois houve o republicano, que por ser religioso e não ser de esquerda era visto em certos meios como a personificação da idiotia. Romney, ficou provado, não é idiota. Admito que, por diversos motivos, também não é o sujeito ideal para varrer o estatismo interno e o ecumenismo externo infiltrados na Casa Branca. Ainda assim, conforme o debate mostrou, é uma modesta esperança. Em inglês, "hope", palavra ultimamente familiar e profanada. 

A artimanha
Paulo Portas tem sido pouco referido nesta página. Presumo que o objectivo imediato do dr. Portas seja ser pouco referido em qualquer página. O objectivo a prazo é passar incólume sob o desgaste do Governo e, no momento oportuno, derrubá-lo. É uma finalidade respeitável. Discutível é o meio, que se esgota na adesão a cada voga "popular", incluindo o apelo a cortes na despesa semanas depois de conspirar discretamente contra a privatização da RTP. Se a artimanha resultar, fica provado que ou os cidadãos sofrem de um atraso profundo ou dedicam as respectivas existências à consumação dos sonhos íntimos do dr. Portas. Quais sonhos, já agora e se não for indiscrição?

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
07/10/12

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