21/09/2012

ANNE-MARIE SLAUGHTER





O desporto sangrento
                                  da política

O antigo Presidente dos EUA Bill Clinton proferiu um dos melhores discursos da sua vida na Convenção Nacional Democrática que teve lugar recentemente. Uma das maiores salvas de palmas surgiu quando Clinton afirmou que o facto de Barack Obama ter nomeado Hillary Clinton como secretária de Estado, depois de esta ter sido a sua principal rival política, provou que "a democracia não tem de ser um desporto sangrento".
Aqueles aplausos reflectem a opinião da maioria dos eleitores norte-americanos de que a política dos EUA se tornou bastante partidária e que os rivais estão mais interessados em atacar-se entre si – "espremendo sangue" – do que em concentrarem-se em questões políticas. Mas o que o Presidente Clinton estava realmente a dizer era que o facto de Hillary Clinton se deslocar a outros países e trabalhar com o seu ex-rival político na prossecução do interesse nacional é um poderoso exemplo da forma como é suposto a democracia funcionar.

É importante fazer esta referência, porque em demasiados países a democracia continua a ser – literalmente – um desporto sangrento. Os votos servem para chegar ao poder e depois perseguir, deter ou até mesmo matar os adversários. Como diz o lema: "Um homem, um voto, uma vez". Na verdade, a Fundação Nacional para a Democracia nos EUA caracteriza alguns países como "ditaduras eleitorais".

Muitos temem precisamente um resultado semelhante para o despertar árabe, em que os movimentos populares derrubam os déspotas, apenas para instalar novos ditadores através de eleições. A única maneira de evitar esta situação é através de um maior empenho no processo de eleição de um governo livre e justo, do que em relação ao líder ou ao partido que é eleito, mesmo quando o vencedor é francamente contra os nossos interesses.

Este é também o dilema da política dos EUA no Médio Oriente na revolução que está em curso.
Durante 30 anos, o governo dos EUA apoiou governantes seculares que justificavam a mão de ferro com que se agarravam ao poder pela insistência de que a opção era entre eles e os "islamitas" – a quem consideravam fanáticos religiosos empenhados em levar os seus países de volta à Idade Média. Actualmente, os EUA precisam de convencer as populações cépticas de que estão preparados para negociar com governos islâmicos eleitos.

As pessoas que acabaram por acreditar na omnipotência e determinação dos EUA para defender os seus interesses na sua região não conseguem acreditar facilmente que, subitamente, o seu governo esteja preparado para apoiar um resultado que não desejava. Na verdade, alguns partidos cristãos coptas e liberais protestaram contra Hillary Clinton, durante a sua visita ao Egipto em Junho passado, porque, na sua opinião, os EUA deviam ter pretendido que a Irmandade Muçulmana ascendesse ao poder.

A política futura dos EUA deve adoptar um princípio simples, mas poderoso: a América irá cooperar com e apoiar (através de vários tipos de assistência externa) qualquer governo escolhido através eleições livres e justas com supervisão internacional, que governe de acordo com uma constituição nacional ratificada pelo povo, sendo o seu cumprimento supervisionado por um sistema judiciário independente.

Os norte-americanos acreditam que a democracia liberal é a melhor forma de governo, não pelo facto de aquilo que "o povo" quer ser automaticamente certo ou bom, mas sim porque confronta os diferentes interesses. Como James Madison escreveu na obra O Federalista, "Numa república é extremamente importante, não só proteger a sociedade contra a opressão dos seus governantes, mas também proteger uma parte da sociedade contra a injustiça da outra parte".

Uma assembleia genuinamente representativa no século XXI não vai instituir um sistema de governo que tolere presos políticos, censura, opressão de minorias e de mulheres, tortura, desaparecimentos ou detenção sem julgamento. Os governos que obedecem aos seus princípios constitucionais, mesmo quando estes são interpretados e aplicados de forma imperfeita, devem evitar uma recaída da ditadura e provavelmente farão autocorrecções ao longo do tempo.

Enquanto os governos operarem de acordo com destes parâmetros gerais, os EUA deveriam olhar para si antes de julgarem os outros. O vice-presidente Joseph Biden também proferiu um discurso vigoroso na convenção democrata, tendo citado uma frase do discurso inaugural de Obama: os EUA devem liderar o mundo não pelo "exemplo do nosso poder, mas pelo poder do nosso exemplo”. Infelizmente, em termos de prática democrática, presentemente esse exemplo está fortemente maculado.O Supremo Tribunal dos EUA interpretou a Constituição dos EUA de uma forma que vicia todas as restrições às despesas de campanha, permitindo basicamente que indivíduos abastados e empresas norte-americanas comprem as eleições. O apoio de um multimilionário tem agora muito mais peso do que o apoio de um cidadão comum, metendo ao ridículo o princípio "um homem, um voto".

Além disso, os dois principais partidos norte-americanos costumam usar o seu poder quando ganham para redefinir os limites dos distritos eleitorais de forma a ficarem favorecidos e a prejudicarem os seus adversários. E, em alguns estados, o Partido Republicano está a tentar abertamente impedir a votação, exigindo aos cidadãos que apresentem um documento de identificação oficial com fotografia, cuja obtenção pode ser difícil e dispendiosa. Estas exigências são uma nova versão do imposto de capitação (poll tax) que os democratas do sul da América utilizaram durante anos para privar a população afro-americana do seu direito de voto.

A democracia apenas pode funcionar correctamente se o princípio de todos os cidadãos for: "Eu posso odiar o que aquele indivíduo representa, mas desde que seja eleito de forma justa e governe de acordo com a constituição, defenderei até a morte o seu direito de concorrer e vencer." Se a democracia pretende ser algum tipo de desporto, todos os seus jogadores deverão respeitar as regras do jogo.

Professora em Princeton, ex-directora da planificação de políticas do Departamento de Estado dos EUA


Tradução: Teresa Bettencourt/Project Syndicate

IN "PÚBLICO"
20/09/12

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