26/08/2012

ANA PALACIO



 O mau uso da lei 
     no caso de Julian Assange

 O alvoroço em torno da concessão de asilo político por parte do Equador ao fundador da WikiLeaks, Julian Assange, encapotou inconsistências enormes. Apenas através da sua análise poderemos entender o que está verdadeiramente em causa neste caso.
Para começar, um governo com um registo duvidoso em matéria de liberdade em geral e de liberdade de imprensa em particular, está a acenar a bandeira do Estado de direito e do respeito pela liberdade de expressão enquanto lança dúvidas sobre a Suécia, um país que lidera o mundo em termos do respeito das garantias processuais e do direito internacional.

E isto não é tudo. O chefe da equipa de advogados de Assange, Baltasar Garzón, tem sido um defensor fervoroso da interpretação mais restrita de asilo político, tendo obtido prestígio internacional com o êxito do pedido de extradição do ditador chileno Augusto Pinochet. Agora, porém, está a defender exactamente o oposto.

A rejeição da extradição de Assange para a Suécia, para ser interrogado sobre acusações de abuso sexual, tem por base a suposta interferência no caso por parte dos Estados Unidos. Mas tal interferência não se concretizou de forma alguma. Assim, enquanto o Equador acena a bandeira do anticolonialismo contra a Inglaterra, a conclusão que se retira é a de que Assange, Garzón e o presidente do Equador, Rafael Correa, estão simplesmente a jogar ao velho jogo de “culpar a América" para fugir a um Mandato de Detenção Europeu (MDE) regularmente emitido, aprovado pelo Supremo Tribunal do Reino Unido.

Além dos factos do caso Assange, o seu significado consiste na ascensão actual de uma forma de populismo que se refugia no Estado de direito, prejudicando invariavelmente o âmbito e a aplicação da lei. A posição do Equador sobre o caso foi reiterada por outros membros da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), incluindo Cuba e Venezuela. E no entanto, de acordo com os Repórteres sem Fronteiras (RSF), em 2011-2012, o Equador ocupou o 104.º lugar dos 179 países a favor da liberdade de imprensa. Da mesma forma, o Índice da Freedom House para 2012 (IFH) classifica o Equador como "parcialmente livre" e com tendência a decrescer.

É igualmente importante notar que a Venezuela, membro importante da ALBA, não regista melhor classificação (117.º na escala dos RSF, sendo também classificada como "parcialmente livre" pelo IFH para 2012). Numa posição de claro contraste, a Suécia lidera as classificações dos RSF e é um dos dois únicos estados com excelentes classificações da Freedom House em matéria de política e liberdades civis.

Além dos números, os RSF e a Freedom House constataram um declínio recente em termos de liberdade no Equador, apontando a campanha persistente de Correa contra os críticos nos meios de comunicação social, o uso de recursos estatais por parte do governo para influenciar o resultado de um referendo e a reorganização do poder judiciário em flagrante violação das disposições constitucionais. Entretanto, um relatório recente sobre a Venezuela, elaborado pelo Grupo Internacional de Crise, menciona a existência de condições injustas no período pré-eleitoral para as eleições presidenciais e a ausência de condições equitativas para os meios de comunicação social.

As recentes declarações de Correa tornam visíveis estas contradições. Ainda no passado mês de Maio de 2012, Correa declarou que “os governos que tentam fazer alguma coisa pela maioria das pessoas são perseguidos pelos jornalistas, que pensam que por ter uma esferográfica e um microfone podem dirigir até o próprio ressentimento contra nós. Muitas vezes insultam e difamam por pura aversão. São os meios de comunicação social ao serviço dos interesses privados de alguém”.

E no entanto, esta declaração surgiu numa entrevista conduzida pelo próprio Assange, o autoproclamado guerreiro da liberdade de expressão, durante um programa de televisão emitido recentemente por um canal russo controlado pelo governo do Presidente Vladimir Putin.Infelizmente, o Estado de direito fictício promovido por Assange, Correa e outros populistas está a ganhar adeptos no mundo globalizado de hoje. Isto é perigoso, porque o seu método de abordagem consiste na aplicação selectiva e inconsistente de princípios e preceitos legais ou quase-legais, o que é exactamente o oposto da regra de dependência do Estado de direito na generalidade e na previsibilidade. Ao distorcer a realidade e ao impugnar o sistema jurídico sueco – um modelo exemplar em termos de segurança jurídica, justiça e profissionalismo – os defensores desta subversão estão a minar os alicerces de um sistema internacional que serve como um baluarte contra os impulsos totalitários.

No entanto, o aspecto mais estranho do caso Assange é o silêncio ensurdecedor por parte dos actores e instituições cuja existência e legitimidade emanam da integralidade do Estado de direito. O silêncio da União Europeia é talvez o mais preocupante. O site oficial do Serviço Europeu de Acção Externa inclui uma infinidade de declarações e denúncias sobre questões que vão desde a Síria a Madagáscar e ao Texas, mas se efectuarmos uma pesquisa usando "Assange" como palavra-chave, o resultado será uma única entrada datada de Abril de 2012, sobre a reacção do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ao WikiLeaks.

Na verdade, nenhum líder da UE – nem o prolífico presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, nem o presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, sempre cinzento, ou a cautelosa Alta Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Catherine Ashton – considerou oportuno contrariar os ataques infundados a dois membros da UE. Também não se preocuparam em defender um instrumento fundamental da União amplamente proclamado – o Mandato de Detenção Europeu, ao abrigo do qual o Reino Unido deteve pela primeira vez Assange.

Como é que a UE, tão criticada pela sua tendência para as declarações e pareceres, pode ser omissa a respeito de um problema para o qual a sua voz não só faria sentido, como também poderia fazer a diferença? Seja qual for a razão, já é altura de os líderes da União quebrarem o silêncio e falarem, de forma clara e inequívoca, tomando uma iniciativa que possa, espera-se, ser ouvida e reproduzida por outros líderes e organizações internacionais.


Ex-ministra dos Negócios Estrangeiros de Espanha e antiga Vice-Presidente do Banco Mundial

Tradução: Teresa Bettencourt/Project Syndicate

IN "PÚBLICO"
23/08/12
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