22/07/2012

VICENTE JORGE SILVA




 A moeda furada


O debate parlamentar sobre o Estado da Nação foi um não-acontecimento. Uma suposta anormalidade absolutamente normal num pequeno país que apenas obedece, respeitosamente, à regra europeia.
Uma semana depois das expectativas criadas pelo recuo da sra. Merkel no último Conselho Europeu – e que, apesar da sua crescente popularidade caseira, lhe valeram severas críticas entre algumas elites alemãs –, a ordem recompôs-se: o pacto de crescimento proposto pela França desvaneceu-se na sua dimensão simbólica, enquanto a Espanha e a Itália voltaram a ser alvo da voracidade dos mercados financeiros (que haviam começado por acolher com euforia os resultados da cimeira de Bruxelas).
O sentido da emergência evaporou-se. Não há sintonia entre o tempo vertiginoso dos mercados e o tempo longo das decisões e construções políticas. Nada de novo, afinal, na frente europeia, apesar das esperanças de um pequeno milagre e de uma brecha na muralha.
Passos Coelho limitou-se a reafirmar a fidelidade religiosa do seu Governo ao memorando da troika e não esclareceu o que se propunha fazer para contornar as dificuldades colocadas pelo Tribunal Constitucional ao Orçamento do Estado do ano que vem. Para já, não haverá aumentos de impostos nem outras medidas congéneres. Mas ninguém adivinha o futuro e há sempre circunstâncias imprevisíveis que obrigam a dar o dito por não dito, como Rajoy acaba de demonstrar em Espanha, com os riscos já patentes de uma incontrolável explosão social.
O apelo – lançado por Passos e secundado por Portas – ao maior partido da Oposição para colaborar na estratégia governamental era um truque estafado para compor as aparências. Apesar de perseguido pelo fantasma de Sócrates – que os tenores da maioria não se cansaram, aliás, de agitar durante o debate –, Seguro aproveitou para tentar distanciar-se da cumplicidade forçada pelo memorando que o PS subscreveu. Mas a herança socrática é efectivamente um fardo pesadíssimo que os socialistas não conseguem atirar para trás das costas, por muitas voltas que queiram dar ao destino.
Em todo o caso, o álibi Sócrates, à força de ser repetido até à exaustão, acaba por pôr a nu a extrema vulnerabilidade do Governo e a sua política de navegação à vista perante o impasse da política de austeridade.
Não faz sentido, aliás, pretender cativar a cooperação de Seguro e, ao mesmo tempo, dizer que ele e Sócrates são duas faces da mesma moeda, conforme declarou no debate de anteontem o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro. Pelo contrário, o que se torna cada vez mais notório são as bizarras semelhanças entre Sócrates e Passos Coelho.
Não são decerto irmãos gémeos na postura e no estilo. Mas se Passos é indiscutivelmente mais suave, menos impetuoso e agressivo do que o seu predecessor – cultivando a imagem de aluno bem educado que se preza de ser –, também já não dispensa imagens de recorte trauliteiro, como a da «porcaria no ventilador», utilizada neste último debate.
A verdade é que Passos não pode exibir a candura e a higiene de costumes políticos que eram a sua imagem de marca inicial, quando o Governo imita os piores tiques do clientelismo socrático, distribuindo cargos de favor entre fiéis e apaniguados ou deixando enredar-se no burlesco folhetim Relvas (que, na sua vertente ‘doutoral’, é apenas um remake da engenharia universitária de Sócrates).
Mais do que isso, porém, é a atitude obstinada de negação da realidade, a cegueira e a arrogância política (mais dissimulada e sonsa em Passos Coelho), o que tende a fazer deles gémeos políticos, embora separados à nascença. E se a outra face da moeda de Sócrates fosse, afinal, Passos Coelho? Ou se ambos se reduzissem a uma moeda furada?


IN "SOL"
16/07/12

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