03/04/2012

ALBERTO GONÇALVES

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(1 de) Abril em Portugal

 Após impor a redução drástica na quantidade de freguesias e de municípios, o Governo recusou patrocinar o desleixo das autarquias que sobraram. Confrontado com as súplicas para que o Estado central patrocinasse dois mil milhões de euros das dívidas do poder local à banca, cerca de um sexto da dívida total, Pedro Passos Coelho parafraseou o que, com liberdade poética, um jornal disse que Gerald Ford disse à falida câmara de Nova Iorque em 1975: vão morrer longe.

Apesar da reacção furiosa da ANMP e de Miguel Relvas, que depois de demitido por razões familiares passou a assinar um comentário regular na TVI muito crítico para com os seus ex-colegas, a decisão não surpreendeu ninguém, vinda de um Executivo que privilegia a opção pelos cortes na despesa em lugar do saque aos contribuintes. Aqui e ali, sucedem-se as medidas de contenção, traduzidas na abolição de centenas de institutos públicos e similares, nas privatizações da RTP, da CP e da TAP, na partilha da Vespa de Pedro Mota Soares por parte de sete ministros e nos "cortes" no funcionalismo e nas nomeações.

Talvez o "corte" mais polémico, a extinção do Ministério da Economia vem permitindo a redução do défice sem perturbar a recuperação da actividade económica e da confiança dos consumidores. Desde que se viram entregues a si próprias, as pequenas, médias e grandes empresas sobreviventes depressa adquiriram uma inédita capacidade de se desenrascar no mercado interno e, frequentemente, no externo. Graças a estes progressos e a uma revisão a sério do código laboral, o desemprego continua a cair a pique. Álvaro Santos Pereira, que entretanto regressou ao Canadá, foi dos raros portugueses a emigrar no primeiro trimestre do ano.

Mesmo os "agentes" da "cultura", o habitual barómetro invertido do acerto governativo, ameaçam diariamente partir rumo a paragens onde lhes reconheçam o mérito mas permanecem por cá, a exibir desagrado pelo cancelamento da Capital Europeia da Cultura, o fim dos subsídios ao "audiovisual" e a venda do CCB a uma fábrica de candeeiros chinesa.

Na oposição, descontados os queixumes de "históricos" como Mário Soares e Manuel Alegre, de súbito reunidos à frente de uma Plataforma Indignada de Luta pela Invocação da Memória (PILIM), nenhuma voz se ouviu no PS actual contra a proposta de António José Seguro para que o partido assumisse o seu papel na crise agora terminada e, por pudor, mudasse de programa e de nome. Por enquanto, ambos são segredo. A propósito de embaraços socialistas, o eng. Sócrates, que recentemente se mudou para Luanda e, sem qualquer "cunha", se inscreveu num doutoramento na Universidade Agostinho Neto, continua a ser julgado à revelia em dois ou três processos judiciais.

Sob o tradicional mando do PCP e com a tradicional colagem do Bloco, a CGTP mostra-se preocupada com a melhoria das condições de vida e desatou a convocar greves gerais todas as terças e quintas. Na penúltima, 17 sujeitos e uma criança desceram a Av. da Liberdade. Da última não houve notícia.

Da Presidência da República também se sabe pouco, excepto que há meses que Cavaco Silva deixou de falar aos jornalistas, escrever prefácios, actualizar o Facebook e, em suma, estabelecer alguma forma de contacto com os cidadãos. Em troca, segundo as sondagens, os cidadãos dedicam-lhe uma subida vertiginosa nos índices de popularidade.

Portugal tinha de acertar um dia, nem que fosse o dos enganos.

Quinta-feira, 29 de março

A 17 de Março, Fabrice Muamba, futebolista do clube inglês Bolton, sofreu uma paragem cardíaca durante um jogo e quase morreu. Em simultâneo, Liam Stacey, um galês de 21 anos, aproveitou para se divertir à custa do caso no seu Twitter, no qual escreveu umas graçolas sobre o infortúnio de Muamba e insultos à respectiva etnia (Muamba é preto).

Até aqui, tudo normal: temos um sujeito que sofre de um problema físico e outro sujeito que sofre de um problema mental. A partir daqui, as coisas ficam estranhas: alguns utilizadores da referida "rede social" mostraram-se ofendidos com as palermices do sr. Stacey e, após um processo cujos pormenores me escapam, num ápice o sr. Satcey viu-se diante de um juiz de Swansea que o condenou a 56 dias de prisão para, cito, "reflectir a indignação suscitada".

A indignação ainda se compreende. A condenação nem por isso. Bem sei que os universos em causa, leia-se o futebol e a Internet, são particularmente dados à cordialidade e à sensatez, o que facilitou a repulsa às atoardas do sr. Stacey. Porém, nem todos os sectores da sociedade se regem por tão elevados valores: se o sistema judicial começa a punir a estupidez, conviria que percebesse que nunca terminará a tarefa. O sr. Stacey é um idiota? Provavelmente. Mas a idiotia, permanente ou ocasional, é uma característica distribuída com generosidade pela espécie. Sobretudo a espécie de maluquinhos que, a fim de tornar o mundo um lugar melhor, se empenha em transformá-lo primeiro num lugar inabitável.

Sexta-feira, 30 de março

Quando, em Julho do ano passado, o norueguês Anders Behring Breivik assassinou 69 pessoas numa ilha de Oslo, o Ocidente depressa percebeu que a culpa do massacre era partilhada pelo sr. Breivik e pela "cultura de morte" que ele representava. Sendo cristão, conservador, islamofóbico e, constou, sionista (?) e até maçon, não surpreendeu nada que o sr. Breivik imitasse a actividade favorita de inúmeros cristãos, conservadores, islamofóbicos, sionistas e maçons e desatasse aos tiros a quem lhe aparecesse pela frente.

Quando, ao longo das últimas semanas, Mohamed Merah matou dois soldados franceses de ascendência argelina, um soldado francês de ascendência caribenha, um rabino e três crianças de uma escola judaica, o caso revelou outra complexidade. E o Ocidente revelou outra cautela no diagnóstico. Afinal, o sr. Merah era um simpático muçulmano, cuja acção desesperada não comprometia ninguém: os muçulmanos simpáticos não se celebrizaram por matar à toa. Os devotos de Alá, de resto, mostraram-se imediatamente constrangidos pelos crimes, embora menos por pena das vítimas do que por receio de que os crimes implicassem consequências desagradáveis sobre a comunidade islâmica em França, no fundo a verdadeira vítima do sucedido. E será que o sr. Merah foi o verdadeiro culpado?

Aparentemente, nem por isso. Mesmo à distância de Oxford, o "intelectual" Tariq Ramadan viu tudo, compreendeu tudo e explicou quase tudo. Em suma, o sr. Merah via- -se discriminado graças à sua origem, à cor da sua pele, à sua religião e ao seu nome. O que ele perseguia, garante Ramadan, não divergia das ambições do mais banal e honrado dos mortais: igualdade, dignidade, estabilidade, um emprego decente e um lugar para viver. Por azar, a sociedade não prestou a devida atenção aos incontáveis méritos do rapaz e, "cidadão privado de autêntica dignidade", o rapaz acabou forçado a enveredar pelo recurso comum a tantos desprezados, leia--se a chacina. Não se trata apenas de não comprometer o islão: os actos do sr. Merah não o comprometem nem a ele próprio.

Aliás, uma versão alternativa do sucedido, tipicamente disseminada pela Internet, jura que o sr. Merah pertencia aos serviços secretos franceses, os quais, a mando de Israel, o obrigaram a cometer os homicídios a título de provocação. E ainda há o pai de Merah, que pretende processar o Estado francês pela morte injustificada do filho. Há a professora francesa que submeteu os alunos a um minuto de silêncio em homenagem ao sr. Merah. Há os trinta jovens muçulmanos que, em Toulouse, desfilaram em memória do sr. Merah. Há o rapaz judeu agredido em Paris, os disparos contra um centro cultural judaico em Sarcelles e os graffiti obscenos na parede de uma sinagoga em Sartrouville, acontecimentos posteriores às proezas do sr. Merah mas banais no quotidiano francês e europeu. E há, convém não esquecer, os principais culpados do drama: as crianças cuja morte serviu uma tentativa de conspurcar a honra do doce, oprimido e inocente homem que as matou. Felizmente, como se nota, a tentativa falhou.

Millôr Fernandes, que morreu na terça-feira, tinha imensas virtudes. Lembro uma: ser de esquerda e apreciado por quem nunca o foi. É verdade que a convicção não era ortodoxa ("A direita acredita cegamente em tudo que lhe ensinaram, a esquerda acredita cegamente em tudo que ensina"). É verdade que a convicção não era tonta ("O comunismo é uma espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente"). É verdade que a convicção não se estendia às unanimidades do meio como Chico Buarque ("Desconfio de todo o idealista que lucra com seu ideal") ou Lula ("A ignorância lhe subiu à cabeça"). Mas as limitações da ideologia que ridicularizava não apoucam o mérito de Millôr. E a noção do ridículo eleva-lhe a lucidez. 


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
31/03/12

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