05/02/2012

PEDRO NORTON




 

A virgindade já ficou para trás

Não é a economia, estúpido. É a ética, ou a falta dela, que pode dar cabo do Executivo

Os sinais, muitíssimo preocupantes, são evidentes para quem quer que os queira ler. Só mesmo alguns alienígenas políticos insistem em ignorá-los. A sociedade portuguesa está, compreensivelmente, crispada, e acontecimentos que, noutras circunstâncias, não passariam de factos sem qualquer importância vão-nos deixando com a sensação de que o comboio da serenidade pode descarrilar à próxima curva. Dir-se-á, dir-me-ão, que o carro do ministro, a reforma do Presidente, o vencimento dos novos órgãos da EDP valem o que valem, são episódios pontuais, declarações infelizes e que é o populismo que grassa. Seja. Mas é perigoso ignorar que, por trás de algum eventual aproveitamento populista destes casos por parte das oposições e dos media, fervilha uma indignação popular que é muito real. Pouco importa saber se é justa. Fundamental é saber que existe, que desponta em surdina, que alimenta ressentimentos e perplexidades. E que é apenas a ponta do icebergue.

É tarde para chorar sobre o leite derramado. Estamos comprometidos com uma via sacra de austeridade e de ortodoxia financeira para a qual, é importante dizê-lo, dificilmente existiriam alternativas, no quadro nacional, a curto prazo. Sabe-se (espero que se saiba) que a receita, se aplicada sem limite, pode matar da cura a economia. Mas o que é fundamental entender é que esse pode nem ser o principal problema. Porque a receita, se aplicada sem limite, e sobretudo se andar a par de uma multiplicação de "casos", reais ou imaginários, pode também minar o próprio sentido de pertença à comunidade, estilhaçar a coesão social, corroer a autoridade politica, inviabilizar o País. E é por isso mesmo que não é exagero afirmar que, ao longo dos próximos meses, talvez anos, Portugal vai confrontar-se com o seu mais estrutural desafio: o desafio da sobrevivência de um regime politico e de uma democracia cujos alicerces são corrompidos com o anúncio de cada novo escândalo. Mais ou menos importante, mais ou menos injusto.

Este é, por tudo isto, provavelmente o Governo com menor margem de manobra de que há memória para lidar com "casos". E o momento da verdade aproxima-se. Justa ou injustamente, a virgindade já ficou para trás, perdida no caso EDP. A tolerância é zero. A tentação populista continua à espreita. A irresponsabilidade anda a par do desespero. E para ajudar à festa, os dossiês escaldantes (com as privatizações à cabeça e as reformas estruturais a dar os primeiros passos) estão agora ao virar da esquina.

Por ter consciência de tudo isto, por ter consciência da fragilidade dos alicerces do nosso edifício político, por ter consciência do embuste que constitui o mito dos nossos brandos costumes, já por várias vezes o escrevi: mais do que uma obsessão com o défice, o Executivo tem de ter, nos próximos tempos, uma obsessão com a ética. Será que é muito difícil perceber isso? Ao contrário do que dizia o outro, não é a economia, estúpido. É a ética, ou a falta dela, que pode dar cabo do Executivo e, de caminho, pode dar cabo do País tal como o conhecemos.

E o que angustia é pensar, é saber, que tudo está à distância de uma simples fagulha...


IN "VISÃO"
26/01/12

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