18/01/2012

DANIEL DEUSDADO


Muita garganta



As derrapagens do défice são uma brincadeira de crianças quando comparadas às catástrofes que se abatem sobre o território. É nisto que o Governo devia ter pensado antes de entregar o que resta da EDP aos senhores das Três Gargantas, uma empresa detentora da maior barragem do mundo na China. Valeu só o encaixe imediato. A conta pagaremos nós a seguir.
Quanto mais o tempo passa, mais claro fica que o território e a língua são as únicas coisas portuguesas que parecem resistir ao tempo. Da língua valerá a pena falar noutra ocasião. Quanto ao território, ele vai-se desfazendo à medida que a nossa geração o hipoteca com a mesma ganância com que absorveu a dívida e agora se queixa da conta. Obviamente esta venda levanta perguntas como: os chineses vão querer saber do Douro Património Mundial? Das espécies ameaçadas? Do equilíbrio da biodiversidade nos territórios do mastodôntico plano nacional de Barragens? Das campanhas de eficiência energética? E não ficarão zangados se forem reequacionados os contratos "SCUT" das barragens que impõem milhões por décadas e décadas em cima dos consumidores?
Vejamos a barragem das Três Gargantas na China. Obrigou à retirada de 1,3 milhões de pessoas do local onde viviam e deixou debaixo de água milhares de locais de interesse arqueológico. Os geólogos assinalam que Xangai é uma cidade na rota de uma tragédia se um dia um sismo acontecer nas Três Gargantas. Num país democrático esta obra teria sido feita? Muito dificilmente. Excepto se for um país despovoado, gerido de forma autista a partir de uma capital distante e com uma opinião pública indiferente...
Esta é uma questão central do nosso tempo: quem anda a falar de crescimento económico no Ocidente pensa imenso na energia e esquece a água. A população mundial crescerá até aos nove mil milhões de pessoas e os bebés nascerão sobretudo na Ásia e América Latina. No recente relatório das Nações Unidas sobre a água e recursos do solo, a equação é clara: até 2050 vai ser necessário aumentar a produção de alimentos em 70%. O consumo de água será brutal porque a agricultura é responsável por mais de dois terços do consumo global. Ora, embora se pense que as barragens podem dar um contributo positivo para isto, a realidade é a inversa. Como dizia ao "Público" a directora da Agência Europeia do Ambiente, Jacqueline McGlade, "vimos muitas barragens na Europa a falhar rapidamente porque se encheram com sedimentos, ou ficaram secas, ou não funcionaram como se esperava". Junte-se a isto a impactante produção agrícola de biocombustíveis nos férteis solos do Leste da Europa, as perdas arrasadoras na Amazónia ou das florestas da Ásia, a seca em África, a ameaça sobre os insectos polinizadores (abelhas, borboletas, etc...) e percebe-se como vai ser difícil alimentar tanta gente e manter a qualidade de vida que o ser humano alcançou.
Quando o Governo português escolhe quase por unanimidade a proposta chinesa está a dar um sinal também ambiental. Para as pequenas e grandes coisas. A luta para travar a barragem do Tua (e a do Sabor) é um delas e torna-se ainda mais quimérica quando o poder na EDP é agora chinês. Para os que acreditam na "arquitectura naturalista" com que Souto Moura vai 'salvar o Douro', devíamos fazer um desafio: caso a UNESCO retire o estatuto de Património Mundial ao Douro, Mexia (e Catroga) deviam demitir-se. E no Governo, os responsáveis da Economia, Ambiente e Cultura também. Aceitam o desafio ou são todos inimputáveis? E a EDP, pode ir pondo um dinheirinho de parte para pagar as indemnizações ao sector do turismo ao longo de anos?
A venda do poder de decisão na EDP a chineses, e o que se pode seguir na REN, GALP, Águas de Portugal (com potenciais angolanos, chineses ou árabes) é assustador. Os compradores chegam com dinheiro mas não trazem no currículo respeito pela democracia. Condenam-nos depois à mais vil pobreza: a de não termos sequer opinião sobre todo o lixo que nos quiserem pôr em cima. Ora, lá por não termos dinheiro, não temos que alienar o direito a viver com o mínimo de saúde e memória. A nossa terra vale zero em bolsa. Mas é tudo o que temos.


IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
12/01/12

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