09/01/2012

ALMORRÓIDA CADAVÉRICA

 
Os pedidos incríveis 
nas funerárias
Seria possível? A agência Funerária Clássica só tinha 24 horas para preparar um funeral que exigia uma imensidão de meios. Tinha morrido um economista estrangeiro na casa dos 60 anos, que vivia em Lisboa. Mário Ramos, sócio-gerente da funerária, mobilizou 15 pessoas, que se desdobraram em pesquisas na Internet e em contactos para empresas habituadas a satisfazerem caprichos de milionário. 
Para que a mãe do morto, que vivia num país europeu, pudesse vir ao funeral, na Basílica da Estrela, era necessário ir buscá-la de táxi aéreo. O avião Cessna saiu da Portela com o neto a bordo, para uma viagem de ida e volta na manhã do dia da cerimónia fúnebre, há quatro anos. Mas quando o aparelho chegou ao destino, a mulher disse estar indisposta e recusou fazer a viagem para estar no funeral do filho. Foram 5 mil euros desperdiçados.

Em Lisboa, a funerária estendeu uma passadeira vermelha à entrada da Basílica, encontrou um violoncelista e um organista, e arranjou transporte para ir buscar amigos e familiares. Contrataram ainda seis seguranças privados, que se revezaram por turnos. A acompanhar o carro funerário, iam mais três viaturas, só para as flores. No total, a família do economista gastou cerca de 50 mil euros. “Quem nos dera ter um destes por mês”, diz Mário Ramos.

Funerais personalizados e até extravagantes começam a ser comuns em Portugal mas, por enquanto, ainda estão longe dos serviços insólitos que se podem contratar nos Estados Unidos. Neste país, há empresas que fornecem foguetes para espalhar as cinzas do morto no céu (a partir de Houston, onde se situa a sede da NASA), organizam velórios com transmissão pela Internet e encomendam urnas de acordo com o estilo de vida do falecido – há modelos inspirados nos universos western ou motoqueiro e até caixões em forma de mesa de bilhar. Tudo tem um custo: o preço dos funerais nos Estados Unidos aumentou 27% na última década.

Em Portugal, as agências funerárias começam a sair das cerimónias clássicas e têm de satisfazer inúmeros pedidos invulgares. Nas capelas já há coisas impensáveis há uma década, como máquinas de café e biscoitos – ou sopas servidas durante o velório. Outras empresas espalham cinzas no mar, a cinco milhas da costa, e à frente de edifícios ou locais que foram importantes para os falecidos.

A maior fábrica de urnas em Portugal, a Joriscastro (produz 13 mil por ano e detém quase 50% do mercado), já fez caixões com o símbolo do Partido Comunista gravado na madeira, verdes para adeptos do Sporting, vermelhos para os do Benfica e em xadrez para quem apoiava o Boavista, com os emblemas esculpidos ou em autocolante, e o interior forrado com as cores dos clubes. Cada um custa entre 1.800 e 2.000 euros, a preço de revenda. “Há uns anos fui a uma feira e encontrei por lá um marceneiro de Aveiro que tinha feito para ele próprio uma urna com a forma do modelo 200 da Mercedes, que era o seu carro preferido”, conta Joaquim Castro, proprietário da fábrica.

Há cinco anos, a Funerária Central de Alhos Vedros organizou o funeral do provedor da Santa Casa da Misericórdia local, Jorge Fatia, também conhecido por ser militante do PCP. A família pediu uma urna com o símbolo gravado, mas a exigência chegou em cima da hora e a solução foi criar um autocolante do partido por computador e colá-lo na tampo. No caixão, Jorge Fatia foi coberto com uma bandeira do PCP e a limusina que o transportou ao cemitério levava uma bandeira portuguesa e outra mais pequena, também do partido. No cemitério, foi recebido com uma salva de palmas e com o hino do PCP, A Internacional.

Há pedidos invulgares, como levar para a sepultura garrafas de vinho, maços de tabaco e até a chave da própria urna. Francisco Silva, da Agência Funerária Central de Sacavém, recorda-se de um homem, da Lousa, perto da Venda do Pinheiro, que tinha pedido à família para ser enterrado com vinho. O agente funerário foi a um café da zona e comprou uma garrafa de tinto de mesa, com tampa de alumínio, e que na altura lhe custou dois escudos. Depois, antes do velório, colocou a garrafa no meio das pernas do falecido e tapou-a com o manto, para não causar estranheza a quem aparecesse na capela, embora fosse visível o vulto do objecto. “Ele gostava muito de vinho”, recorda.

Já um guitarrista de fado vadio de Alfama, que faleceu aos 79 anos, passou a vida a fumar Definitivos e Kentucky. Os primeiros eram conhecidos pelos maços de 24 cigarros e os segundos eram chamados “mata-ratos”, vendidos numa embalagem de 10 unidades. “Toda a vida o vi a fumar aquilo”, conta Mário Ramos, da Funerária Clássica e neto do músico, que também era operário metalúrgico.

Quando morreu, de pneumonia, a família decidiu satisfazer o seu pedido: queria ser sepultado com dois maços de tabaco daquelas marcas. Foi quase impossível: em 2001, já era rara a tabacaria que os vendia. Mário Ramos andou por todos os estabelecimentos de Alfama e, num deles, lá conseguiu encontrar dois Kentucky. Foram colocados junto a uma mão do morto, também debaixo do manto, embora o fadista não acreditasse que pudesse matar o vício no além. “Era um avô boémio, teve muitas namoradas e era completamente agnóstico. Tanto que não houve serviço religioso”, conta o neto.

Se há pessoas que querem levar recordações da vida terrena, outras têm pavor de a deixar. Sempre que ia ao café, Mário Ramos cruzava-se com um homem que lhe dizia que, quando falecesse, gostava que fosse ele a preparar o seu funeral e que queria levar a chave do caixão, para o caso de ser enterrado vivo. O agente funerário de Belém pensava que o homem estava a brincar, até ao dia em que a família lhe ligou a dizer que ele tinha morrido e que, como lhe tinha dito em várias ocasiões, queria ser sepultado com a chave da urna. Assim foi feito. “Na prática, não lhe ia servir de muito, porque a fechadura do caixão é por fora e não por dentro”, diz.

À agência funerária Ramaldense, no Porto, chegou um pedido que parecia vulgar: a família de uma funcionária de um bingo no Porto, de 44 anos, queria que ela fosse vestida com as suas melhores roupas e acessórios.

César Gomes, proprietário da agência, maquilhou-a com rímel, batom vermelho e muito pó-de-arroz. Depois, receberam os acessórios: era uma peruca loira e uns óculos “tipo mosca”, descreve. “Ela usava aquilo em momentos especiais, como casamentos, e gostava de parecer mais nova. As pessoas descreviam-na como extravagante”, recorda. Foi vestida com uma camisola de gola alta e um casaco de veludo branco. César Gomes confessa que, na agência, não contiveram o riso quando viram o resultado final. “Parecia que ia com medo de ter frio do outro lado”, diz.

Pela diferença cultural, nos funerais de imigrantes há muitas situações insólitas. Os familiares de um homem angolano que faleceu há três anos quiseram mostrar a tios e primos que vivem naquele país africano que estavam bem na vida. Pediram passadeira vermelha, os funcionários do catering tiveram de levar luvas pretas e havia um violinista a criar ambiente. Para que a família que não pôde comparecer pudesse assistir à cerimónia, solicitaram uma equipa de reportagem vídeo e fotográfica. “Queriam mostrar que acarinhavam o senhor, que tinha alguma importância na sua área”, recorda Jorge Matos, director técnico da Agência Funerária Abraão, em Queluz.

Numa outra comunidade de imigrantes (que o director da agência, da zona de Lisboa, não quer identificar, por serem clientes habituais), foram necessárias 13 viaturas para transportar as flores (um serviço que ficou a cargo da funerária) e autocarros para ir buscar e levar ao cemitério familiares, amigos e desconhecidos. Todos os membros da comunidade se juntaram para a última despedida e o funeral foi presenciado por cerca de 500 pessoas.

Na Central de Alhos Vedros, também já se organizaram funerais de imigrantes . Há três anos, o proprietário, Leonel Cardoso, presenciou uma situação invulgar: a família de um guineense começou a partir a urna, com pedras e picaretas, mesmo no momento da sepultura. Do caixão começaram a sair peças de roupa, entre as quais toalhas e colchas. “Era um enxoval completo e devia ser um costume entre eles”, conta. Quem também não poupou esforços, nem dinheiro, foi uma família cigana, em Setúbal. “O irmão do morto, que tinha vindo do Brasil, chegou à funerária e abriu uma mala tipo trolley, com milhares de notas lá dentro. Pediu o melhor caixão, em mogno e chumbo, e pagou no momento. Para se ter uma ideia, tirou meia dúzia para pagar tudo”, conta um agente funerário desta cidade.

Já com um inglês que vivia em Loures, a história foi outra: o homem media mais de dois metros e não havia nenhuma urna com este comprimento. “Não estávamos preparados para aquilo e a traseira do carro funerário teve de ir aberta”, conta Francisco Silva, da Agência Funerária Central de Sacavém. O mesmo aconteceu a um homem de 40 anos que morreu no hospital Pulido Valente, depois de uma cirurgia de colocação de banda gástrica. Sofria de obesidade mórbida e a agência de Alhos Vedros teve de mandar fazer um caixão personalizado, com 2 metros de comprimento e 90 cm de largura.

Pode parecer mórbido, mas nos Estados Unidos há funerais com elementos associados às circunstâncias da morte. Em 2004, um guarda prisional do Utah teve um funeral com uma procissão de 200 Harley Davidsons – tinha morrido a conduzir uma mota desta marca. Em Portugal, isto também já aconteceu: há quatro anos, a família de um rapaz de Sacavém que morreu num acidente de mota pediu à agência que contactasse as associações de motards da região para que estes marcassem presença na cerimónia. Apareceram mais de 80 e alguns abriram o cortejo.
Já o pedido de um homem de Queluz, de 50 anos, que disse à família que gostaria de ser enterrado num caixão amarelo, nunca foi satisfeito – não houve tempo para pintar a urna. Foi cremado num caixão normal, enfeitado com flores daquela cor. O amarelo era uma paixão e até tinha comprado um Volvo dessa cor – foi precisamente o carro em que morreu na estrada.

IN "SÁBADO"
09/01/12

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