30/12/2011

MARIA d'OLIVEIRA MARTINS


 A ética das finanças públicas

As decisões sobre cortes e eliminação de custos não são amorais ou ideologicamente assépticas. São por definição juízos de justiça distributiva

Num momento em que é preciso conter a despesa pública vem à tona o incómodo discurso relativo ao custos dos direitos. E é incómodo porque nos agrada mais avaliar os direitos pelas liberdades que concedem que pelos recursos que consomem – esquecendo que no pano de fundo há sempre um jogo de (des)equilíbrios.

A noção de que a realização dos direitos assenta sobre custos comporta evidentes virtualidades. Só numa perspectiva de ponderação de custos nos tornamos mais atentos à possibilidade de controlo e à transparência na alocação de bens públicos. Só nesta perspectiva, também, ficamos mais sensíveis à economia, à eficiência e à eficácia com que são empregues os meios de que os entes públicos dispõem para os realizar.

São as virtualidades desta abordagem que deixam claro que as finanças públicas não estão nem devem estar encurraladas num juízo meramente contabilístico. Mais que limitar os direitos estritamente por imperativos de equilíbrio orçamental, as finanças públicas devem ser tomadas como uma disciplina ética, uma manifestação do desígnio superior da justiça. “Um Estado que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um grande bando ladrões” (Bento XVI – Deus Caritas Est). A abordagem do problema dos custos dos direitos fundamentais não pode pois deixar de se cruzar com valores como o da democracia ou da equidade na distribuição.

A referência aos valores democráticos é óbvia, pois nunca é de mais recordar que foram questões financeiras – cunhagem de moeda, cobrança de impostos, despesa pública – que estiveram na génese da instituição parlamentar, como a conhecemos hoje. Mais do que nunca devemos reivindicar do decisor público não só medidas que se identifiquem com a comunidade política mas também o cabal respeito pelo princípio do consentimento. Ou seja, exigir que todas as decisões com reflexos na situação patrimonial da mesma comunidade sejam efectivamente autorizadas pelos seus membros.

Quando falamos de equidade, referimo-nos a ela em relação à geração presente e às gerações futuras. Em relação à geração presente, devemos exigir, no corte dos gastos implicados pelos direitos, não a aplicação de uma mera igualdade a olho, mas de equidade fundada numa medida clara, susceptível de escrutínio, por exemplo, adoptando a fórmula rawlsiana do princípio da diferença ou da igualdade complexa de Walzer. Em relação às gerações futuras, é incontornável uma referência à equidade intergeracional: algumas despesas, por gerarem riqueza futura, devem ser pensadas numa perspectiva de esforço conjunto entre as gerações. A ideia é não onerar excessivamente a geração presente, mas, em contrapartida, também não pôr aos ombros de filhos e netos todos os encargos gerados pela geração antecedente. E daí, por um lado, a ideia de não impossibilitar o recurso ao endividamento e, por outro, a necessidade de imposição de limites a este mesmo endividamento.

Tudo isto para dizer que as decisões sobre cortes e eliminação de custos não são amorais ou ideologicamente assépticas (“tecnocráticas”). São por definição juízos profundos de justiça distributiva, porque decidem a forma como os recursos, escassos por natureza, são (ou não) utilizados de forma sustentável em benefício da comunidade como um todo.

Docente na Faculdade de Direito
da Universidade Católica Portuguesa

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22/12/11


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