14/11/2011

VÍRGINIA TRIGO



A arte de mascar sementes de girassol 
                       ou como negociar na China

Já não via Toni Qiu há mais de dez anos. Reencontrei-a no mês passado em Pequim, num encontro de antigos alunos do ISCTE na China e, de entre os mais de 100 alunos presentes, tive uma satisfação especial em rever Toni Qiu.
Já não via Toni Qiu há mais de dez anos. Reencontrei-a no mês passado em Pequim, num encontro de antigos alunos do ISCTE na China e, de entre os mais de 100 alunos presentes, tive uma satisfação especial em rever Toni Qiu. Apesar da androginia do nome ocidental que para si própria escolheu como acontece com a maior parte dos chineses, Toni é uma elegante rapariga de Xangai para onde se mudou logo a seguir a ter estudado o mestrado do ISCTE em Cantão, um dos primeiros mestrados inteiramente em inglês que por certo terá existido em toda a China.

Já nessa altura o inglês de Toni era perfeito. Além disso era uma aluna brilhante: sentava-se na primeira fila e induzia qualquer professor a superar-se com as suas observações pertinentes, o olhar atento, o sorriso simpático, pois nenhuma aula é perfeita sem a contribuição do aluno. Foi Toni que me iniciou na arte de mascar sementes de girassol. Colocava uma mão cheia na boca e, com uma agilidade surpreendente, ia-as mastigando uma a uma libertando-se das cascas para dentro de um saquinho de papel. Fazia-o com elegância e sem jamais perder a compostura.

Mais tarde eu haveria de compreender quanto o entendimento desta arte me ajudou a verdadeiramente apreciar a minha experiência na China e a cultivar uma paciência quase budista, a superar os atrasos, as irracionalidades ocasionais, alguma má vontade, alguma avareza, e a agarrar as oportunidades possíveis quando é possível.

Mascar sementes de girassol não é tarefa fácil e ainda mais se complica com uma mão cheia de sementes na boca. Como Toni me demonstrou por um caminho cheio de alegorias, envolve trincar primeiro a casca, separá-la da semente e, sem a ajuda das mãos, expulsar a casca e mastigar o miolo. "É muito importante respeitar a semente" recomendou, caso contrário comê-la seria impossível. Tudo isto obriga a manter o cérebro muito focalizado, a executar com destreza várias tarefas ao mesmo tempo e a um certo planeamento pois devemos ter sempre à mão um recipiente para colocar as cascas. O domínio desta técnica "sem mãos" pode demorar algum tempo e, tal como em qualquer negociação, é bom que a pratiquemos em casa pois a nossa mente deve estar activa e alerta, mas sem auto-confiança excessiva já que é preciso evitar trincar a língua em vez da semente.

Desde que nos anos 1990 Toni estudou comigo, já teve mais de cinco empregos e dezenas de outras oportunidades em diferentes multinacionais, ainda assim abaixo da média para o seu nível de educação. Toni tem uma carreira muito organizada e foi ela que me entusiasmou a investigar as preferências dos jovens chineses por empresas de diferentes origens o que tenho vindo a fazer ao longo do tempo. Toni é uma boa representante de todos eles: para primeiro emprego escolheu trabalhar numa empresa europeia, porque em geral proporcionam mais formação e causam menos "stress". Mas as empresas europeias são demasiado passivas para as expectativas dos jovens chineses e a sua falta de agressividade no mercado leva-os a duvidar da sua permanência na China no longo prazo. Além disso, como referiu Toni, parecem não ter objectivos claros e ela, como muitos outros, em breve se mudou para multinacionais americanas. O "stress" é maior, mas nada que os assuste. Estas empresas são em geral muito agressivas, oferecem grandes oportunidades de promoção e boas compensações monetárias. O único senão é que as estratégias vêm delineadas da sede e esta participação mitigada já não agrada a muitos jovens chineses que, em continuação de carreira, preferem mudar-se para empresas privadas chinesas onde a sua relevância é maior ou então, como acontece agora com Toni, preferem montar o seu próprio negócio.

E é um rol de oportunidades que Toni desfia à minha frente, procurando a minha opinião mas já sabendo a dela, com o sentimento de que tudo é possível. Como a maior parte dos seus compatriotas Toni não tem dívidas nem cartões de crédito; gasta 1 "yuan" apenas quando tem 10 no banco e olha o futuro com tanta confiança que, sabendo do que se passa cá e lá, me pergunto se viveremos no mesmo mundo.

Professora no ISCTE Business School

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
07/11/11

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