02/11/2011

JORGE FIEL


Cimeira devia ser em Cracóvia 

 

Para se pouparem ao desgaste psicológico do processamento dos mortos, os nazis entregavam essa tarefa mórbida a prisioneiros, que recompensavam com uma ração extra de comida, senhas para o bordel de Auschwitz ou outras pequenas regalias.


Eram judeus, apelidados sonderkommando, que passavam em revista os corpos dos judeus acabados de morrer na câmara de gás decorada com chuveiros.
Extraíam-lhes os dentes de ouro, posteriormente fundidos em barras.
Despojavam-nos de anéis, pulseiras, brincos, e procuravam com detalhe todos os orifícios do corpo onde pudessem estar dissimuladas jóias ou dinheiro.
Cortavam-lhes o cabelo, posteriormente enviado para fábricas onde era usado como matéria-prima para confeccionar, entre outras coisas, peúgas de feltro para a tripulação dos submarinos.
Depois de processados os corpos, os sonderkommando transportavam-nos para os fornos crematórios.
Esta impressionante mecânica do processo de extermínio de milhão e meio de judeus, ciganos, homossexuais e presos políticos em Auschwitz é descrita e analisada pelo britânico Laurence Rees no livro "Auschwitz: The nazis and the final solution", que comprei na livraria deste campo de concentração, nos arredores de Cracóvia.
Domingo, ao visitar uma exposição sobre o terror nazi (1939-45) e soviético (45-56), no Museu Histórico de Cracóvia, localizado no edifício que serviu de sede à Gestapo, veio-me à memória o livro de Rees e as tenebrosas imagens da exposição de bens confiscados aos judeus - pares de sapatos, malas, próteses, roupas, óculos, pincéis de barba, carrinhos e enxovais de bebé, enxovais - que foi um dos mais violentos socos no estômago que levei quando visitei Auschwitz.
Os nazis levaram a Humanidade ao ponto mais baixo da sua história. Mas a sua derrota e a reconstrução europeia do pós-guerra foram as estacas em que assentou o maior período de paz e prosperidade do Velho Continente, proporcionado pelo diálogo entre países outrora inimigos institucionalizado primeiro timidamente com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, e depois aprofundado até ao euro.
Nesta curva da estrada em que a Europa está, é importante darmos ouvidos aos conselhos de quem tem memória e o saber de experiência feito, como Helmut Schmidt, que, de cadeira de rodas e já para além da fronteira dos 90 anos, saiu do seu retiro para avisar: "Quem considerar que a sua nação é mais importante que a nossa comum Europa está a prejudicar os mais fundamentais interesses do seu próprio país".
Se calhar não seria má ideia que a próxima cimeira europeia se realizasse em Cracóvia, após uma visita demorada dos líderes aos campos de morte de Auschwitz e Birkenau. Talvez fosse mais produtiva.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
27/10/11

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