20/11/2011

HELENA GARRIDO



Os salários privados em mil e um mundos

A proposta da troika de cortar salários no sector privado é de quem não conhece a economia portuguesa. E de quem, reivindicando-se amigo do mercado, é centralista e gosta de governar por decretos. Ainda bem que a ameaça de agravar o défice público e o crédito malparado impediu uma asneira.
Perdida a batalha da taxa social única, eis que a troika volta a atacar na mesma frente, desta vez com a ideia de cortes salariais no sector privado, pressupõe-se que por decreto ou pela via da revisão da Lei, criando ainda mais tensão social.

Claro que é preciso alterar a legislação laboral para permitir que se possa reduzir salários. Não faz sentido, neste como noutros domínios da vida portuguesa, ter leis que não funcionam e estão desajustadas da realidade. Só agrava o já tão frágil Estado de Direito.

A proibição de cortes salariais só não gera mais falências e desemprego em conjunturas de inflação elevada como as que se observaram em Portugal entre meados da década de 70 e o início da década de 90. Com inflação alta, os salários são cortados sem dor. As pessoas aceitavam naqueles tempos aumentos de 15% com inflação em valores da ordem dos 30%.

A integração de Portugal no euro significou entrar num regime de inflação baixa, onde um pequeno país sozinho não corrige desequilíbrios com ilusões monetárias. Mas as empresas precisam de ajustar os seus custos aos proveitos, precisam de se adaptar à conjuntura. E a folha salarial é, frequentemente, a única parcela dos custos em que podem mexer.

O que fizeram e fazem os empresários para ultrapassar a ilegalidade de cortar salários?

As grandes empresas, com bons gestores, perceberam logo na altura da entrada de Portugal no euro que tinham de criar uma margem de flexibilidade. E assim proliferou a componente variável dos salários – que pode ser retirada em qualquer altura. Claro que não resolveram o problema todo, nomeadamente o dos direitos adquiridos. Mas esses, no sector privado, só podem pesar pouco neste momento.

As pequenas e médias empresas, é preciso dizê-lo, cometem ilegalidades. São muitos os casos que todos nós já conhecemos de pessoas que aceitaram cortes nos seus salários por acordo (também ele ilegal) com a entidade patronal.

Esta flexibilidade do mercado de trabalho português – que se revelou também noutras crises – mantém-se, como começam a demonstrar as estatísticas dos custos do trabalho. E como a regras de acesso ao subsídio de desemprego se tornaram mais apertadas, essa flexibilidade só se pode ter reforçado.

Obviamente que há abusos. Que haverá empresários que, apesar de estarem sem qualquer problema, vão aproveitar a conjuntura para ganharem ainda mais margem. Mas o País também mudou alguma coisa neste domínio. Os empresários dos Ferraris foram substituídos por gestores de grandes empresas de BMW.

É pena que a troika, símbolo das virtudes do mercado, pareça acreditar tão pouco no funcionamento do mercado. Ainda bem que o medo de perder receita fiscal e aumentar o crédito malparado evitou medidas que apenas criavam mais uma frente de tensão social. A mudança da legislação laboral pode esperar. O mercado está a funcionar.


IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
17/11/11

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