26/10/2011

VICENTE JORGE SILVA



Quando a farsa 
        acaba em tragédia

Se a história se repete pelo menos duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa, neste caso pode dizer-se que uma farsa representada durante quase quatro décadas acabará fatalmente em tragédia.

O último acto da farsa terminou no passado domingo e a tragédia – que, aliás, lhe esteve sempre subjacente ou ‘oculta’ –, irá seguir-se a qualquer instante. Esta é a conclusão a reter depois do teatro desmanchado das eleições na Madeira.

Haverá, é certo, um intervalo tumultuoso entre um momento e outro, um epílogo patético durante o qual as repercussões da actuação dos farsantes irão ainda prolongar-se em cena, com pantominas definitivamente gastas pela repetição.

Vamos assistir a novos episódios folclóricos, com muita gesticulação num circo já vazio, muito barulho para nada e muito fumo para esconder a brusca transição de género dramático. Mas os dados estão lançados, a não ser que a Madeira seja subitamente engolida pelo Atlântico.

O actor principal ver-se-á finalmente obrigado a sair do palco aos trambolhões por já não ter recursos para reinventar a sua capacidade histriónica num género que nunca foi o seu, responsabilizando-se pela tarefa trágica de convencer os madeirenses a pagar as dívidas loucas que contraiu e foi sistematicamente – e impunemente – escondendo.

Mas, com ele, serão forçados a abandonar a ribalta não só todos aqueles que nunca perceberam o enredo da peça e nela ocuparam o papel de figurantes supostamente ‘sérios’ ou idiotas úteis, mas também os que, tardiamente, se descobriram vocacionados para participar na mesma encenação grotesca… – e que à farsa só encontraram a alternativa de responder com a farsa.

Foi a farsa que opôs e fez convergir dois dos vencedores destas eleições: Alberto João Jardim e José Manuel Coelho. Jardim obteve a sua mais curta maioria de sempre, mas conquistou-a, mesmo assim, porque há quem ainda veja nele o único santo protector das ilusões financiadas a crédito e hoje ameaçadas pelos rigores da troika e do Governo de Lisboa. Quanto a Coelho, levou a um extremo caricatural, porventura sem paralelo na Europa, a sua natureza de subproduto de um sistema que quis reduzir ao ridículo mas de que se tornou refém na palhaçada, não conseguindo agora sobreviver sem ele.

Quem viu na televisão as imagens surrealistas de Coelho abraçando Jardim na Avenida do Mar, depois das últimas inaugurações da campanha, pôde aperceber-se até que ponto eles são irmãos siameses unidos pelo delírio. «O seu tempo acabou, agora é o tempo do amigo Coelho», declarou o candidato ‘trabalhista’, referindo-se a Jardim e a si próprio.

Autodeslumbrado pelo seu insólito sucesso nas eleições presidenciais (40 por cento dos votos na Madeira e 4 por cento a nível nacional), Coelho já não sabe se continua a brincar ou se fala a sério. Mas não seria surpreendente que, na sua megalomania desenfreada, o mais conhecido candidato oposicionista da farsa madeirense ambicionasse, de facto, sentar-se na cadeira do farsante-mor da região.

Teve cerca de sete por cento dos votos, mais do dobro do PND, o seu antigo partido proveta, superou o PCP e fez desaparecer de cena o Bloco. Ora, o Bloco é o herdeiro da UDP, a força mais activista nos primeiros tempos pós 25 de Abril: com a sua irresponsável retórica esquerdista assustou o conservadorismo entranhado da Madeira profunda e favoreceu a irresistível ascensão de Jardim. Nada do que agora aconteceu, com a fragmentação das oposições, foi fruto do acaso (até o partido dos Animais elegeu um deputado…).

Se o CDS ultrapassou pela primeira vez o PS como segundo maior partido regional, isso não se deveu apenas à maior eficácia da campanha centrista e à eterna ambiguidade ou ao embaraço histórico dos socialistas em relação à Madeira – e que os levou a chegar, agora, a um derradeiro beco sem saída.

Ao contrário do PS, o CDS pôde beneficiar da transferência do voto conservador dos desiludidos do jardinismo e ainda da aposta daqueles que confiam, como solução menos traumática para a Madeira pós Jardim, numa coligação PSD-CDS, à imagem do Governo de Lisboa. Seria uma espécie de evolução na continuidade, preservando o que puder ser preservado e beneficiando da cumplicidade dos dois partidos a nível nacional e regional.

Este será, de facto, o cenário mais previsível quando Jardim se vir forçado a abandonar o poder depois de um foguetório ‘independentista’ de despedida. E é provável que algumas das «facas nas costas» de que o ainda líder regional se queixou no domingo – numa declaração onde, freudianamente, se esqueceu dos óculos de leitura – venham a ser espetadas já não pelos seus correligionários de Lisboa ou pelos agentes sinistros do «capitalismo selvagem», mas por alguns pequenos Brutus do seu séquito regional, ansiosos por sobreviver à queda anunciada do chefe e cientes de que é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma. Ora, o problema é que já que nada poderá ficar como dantes e as eleições de domingo representaram o canto do cisne e o dobre a finados do jardinismo.

A experiência da tragédia é a única que agora se oferece, na Madeira, a actores, figurantes e espectadores/eleitores – uma experiência que quase ninguém assumiu e interiorizou e que, por isso, a torna duplamente trágica. Se só a consciência profunda da tragédia pode levar-nos a superá-la, não se vislumbra ainda na Madeira senão um imenso deserto político e uma inconsciência cívica aterradora face aos tempos que aí vêm.

Sou um madeirense sem laços profissionais e intervenção política directa na terra natal desde o ano já tão distante de 1974. Mas confesso que nunca me deparei com uma situação que me fizesse repensar com tanta mágoa as minhas raízes insulares. Como diria Alexandre O’Neill em relação a Portugal, a Madeira é um problema que tenho comigo mesmo.

Revolta-me, por isso, a imensa superficialidade com que vejo ser encarado o futuro da Madeira, como se bastasse aplicar um severo programa de austeridade para deixar para trás a herança trágica da farsa jardinista. A Madeira mergulhou num poço tão fundo e tão negro que, para sair dele, terá literalmente de reinventar o seu destino.

PS – Entrevistado recentemente na SIC-Notícias, António Barreto declarou a sua efusiva admiração pela obra de Jardim (sem apontar, porém, um único exemplo), ao mesmo tempo que confessava detestar o estilo da personagem e manifestava a enorme surpresa que lhe suscitou o descalabro das contas regionais. Tantas incongruências e falta de informação não deixam de ser chocantes num intelectual com vocação de salvador da pátria (embora indisponível para candidatar-se a Presidente da República). Será que a obsessão de Barreto pela «peste negra» do socratismo lhe afectou, noutros domínios, a sua capacidade de discernimento mental?


IN "SOL"
18/10/11

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